Conheci o conto O Barba Azul,
reproduzido no post anterior, em um curso sobre autoconhecimento em que estudei há um tempo atrás.
Eu fiquei tentado a adapta-lo para contar na apresentação final do curso Narrativas & Narradores.
Entretanto, depois de ler o texto abaixo, um exerto do livro Mulheres que correm com os lobos, tive mesmo de mudar de idéia.
Em primeiro lugar, o conto precisaria ser condensado em uma página, por questões de tempo.
Tarefa impossível! Como podemos ver no texto, cada passagem, cada elemento da história tem sua função, seu simbolismo e sua chave iniciática e psicológica - não podendo ser subtraído sob pena de se perder a força transformadora do conto.
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[Sobre o conto O Barba azul
excerto de Mulheres que correm com os lobos.]
O predador natural da psique
O
desenvolvimento de uma relação com a natureza selvagem é uma parte
essencial da individuação da mulher. Para que isso possa
se realizar, a mulher precisa
penetrar nas trevas,
mas ao mesmo tempo não pode cair irreparavelmente numa
armadilha, ser capturada ou morta seja no caminho de ida
seja no de volta.
A história do Barba-azul fala
desse carcereiro, o homem sinistro que habita a
psique
de todas as mulheres, o predador inato. Ele é uma força específica e
indiscutível que precisa ser contida e mantida na
memória. Para conter o predador
natural3 da psique, é necessário que
as mulheres permaneçam de posse de todos os
seus poderes
instintivos. Alguns deles são o insight, a intuição, a resistência, a
tenacidade
no amor, a percepção aguçada, o alcance da sua visão, a audição apurada,
os cantos
sobre os mortos, a cura intuitiva e o cuidado com seu próprio fogo
criativo.
Na interpretação psicológica, recorremos a todos os
aspectos do conto de fadas
para nos ajudar a representar o drama
interno à psique de uma única mulher. O
Barba-azul simboliza um complexo
profundamente recluso que fica espreitando às
margens da
vida da mulher, observando, à espera de uma oportunidade para atacar.
Embora ele
possa se apresentar simbolicamente de modo semelhante ou diferente
nas psiques
masculinas, ele é um inimigo ancestral e contemporâneo dos dois sexos.
É difícil
compreender totalmente a força do Barba-azul por ser ela inata, ou
seja,
inerente a todos os seres humanos desde o instante do nascimento e,
nesse
sentido, não ter origem consciente. No entanto, creio que
temos uma pista de como
sua natureza se desenvolveu no
pré-consciente dos seres humanos, pois na história o
Barba-azul é
chamado de "mágico fracassado". Por essa ocupação, ele se relaciona
com outros
contos de fadas que também retraíam o predador maligno da psique
como um
mago de aparência bastante normativa, mas imensamente destrutiva.
Usando-se
essa descrição como um fragmento de arquétipo, podemos
compará-la
com o que sabemos de feitiçaria fracassada ou de força espiritual
fracassada
na história dos mitos. O grego Ícaro voou perto demais do sol e suas
asas
de cera derreteram, lançando-o de volta à terra. O mito
do povo zuni "O menino e a
águia" fala de um menino que teria
passado a pertencer ao reino das águias, não fosse
por ele
imaginar que poderia desrespeitar as leis da Morte. Enquanto ganhava
altitude
pêlos céus, seu manto de águia emprestado foi arrancado e ele caiu
cumprindo
seu triste destino. Na mitologia cristã, Lúcifer reivindicou igualdade
com
Jeová e foi expulso para o inferno. No folclore há uma
série de aprendizes de
feiticeiros que ousaram ingenuamente
se aventurar além do nível real de seus
conhecimentos ou que tentaram
transgredir a Natureza. Foram punidos com
ferimentos ou cataclismos.
Enquanto
examinamos esses leitmotive, vemos que os predadores
neles
retratados desejam a superioridade e o poder sobre os
outros. Eles sofrem de uma
espécie de inflação psicológica pela
qual desejam ser mais sublimes do que o Inefável,
tão
importantes quanto ele e iguais a ele. Esse Inefável é aquele que por
tradição
distribui e controla as forças misteriosas da Natureza,
incluindo-se os sistemas da
Vida e da Morte e as leis da natureza
humana, e assim por diante.
No mito e nas histórias, descobrimos
que a conseqüência para uma entidade
que tente desrespeitar, dobrar ou
alterar o modo de operação do Inefável é o castigo,
seja por ter
de suportar uma redução da sua capacidade no universo dó mistério e da
mágica —
como, por exemplo, aprendizes que não têm mais permissão de praticar —
ou um
exílio solitário longe da terra dos deuses, ou alguma perda semelhante
de
graça e poder através de dificuldades da fala, de
mutilações ou da morte.
Se formos capazes de entender o
Barba-azul como o representante interior de
todo o mito
do proscrito, poderemos também compreender a solidão profunda e
inexplicável
que às vezes se abate sobre ele (nós) em virtude do fato de ele
vivenciar
um exílio permanente da salvação.
O problema
com o Barba-azul no conto de fadas é que, em vez de alimentar a
luz das
jovens forças femininas da psique, ele prefere encher-se de ódio e
deseja
extinguir as luzes da psique. Não é difícil imaginar que,
numa conformação tão
maligna, esteja enredado alguém que um
dia desejou ultrapassar a luz e caiu em
desgraça por essa razão.
Podemos entender por que motivos, a partir de então, o
desterrado passou a manter uma perseguição cruel em
busca da luz dos outros.
Podemos imaginar que sua esperança seja a de que ele, se
conseguisse reunir uma
quantidade suficiente de almas, poderia acender uma
chama de luz que afinal
erradicaria as trevas e corrigiria sua solidão.
Nesse sentido, no início do conto
temos um ser terrível no que diz respeito ao
seu aspecto não redimido. No
entanto, esse fato é uma das verdades cruciais que a
irmã mais nova deve reconhecer, que
todas as mulheres devem reconhecer: a de que
tanto interna quanto externamente
existe uma força que atuará opondo-se aos
instintos do Self natural e de que
essa força maligna é o que é. Embora talvez
pudéssemos sentir compaixão por
ela, nossos primeiros atos devem ser o do
reconhecimento da sua existência, o
de nos protegermos da sua devastação e, afinal, o
de privá-la de sua energia
assassina.
Todas as
criaturas precisam aprender que existem predadores. Sem esse
conhecimento, a mulher será incapaz
de se movimentar com segurança dentro de sua
própria floresta sem ser devorada.
Compreender o predador significa tornar-se um
animal maduro pouco vulnerável à
ingenuidade, inexperiência ou insensatez.
Como um rastreador sagaz, o
Barba-azul percebe que a filha mais nova está
interessada nele, ou seja, que se
dispõe a ser sua presa. Ele a pede em casamento e,
num momento de exuberância juvenil,
que é muitas vezes uma mistura de loucura,
prazer, felicidade e interesse
sexual, ela diz sim. Que mulher não reconhece esse
enredo?
A mulher ingênua como
presa
A irmã mais nova,
a menos desenvolvida, cumpre o roteiro tipicamente
humano da mulher ingênua. Ela será
capturada temporariamente pelos seu próprio
inimigo interior. Mesmo assim, no
final escapará mais sábia, mais forte, e sabendo
reconhecer à primeira vista o
astucioso predador da sua própria psique.
A história psicológica subjacente
ao conto também se aplica à mulher mais
velha que ainda não aprendeu
perfeitamente a reconhecer o predador inato. Talvez
ela tenha dado início ao processo
repetidas vezes mas, por lhe faltarem orientação e
apoio, ela ainda não o concluiu.
E por isso que as narrativas
míticas são tão construtivas: elas fornecem mapas
iniciáticos de tal modo que mesmo
uma tarefa que esteja emperrada possa ser
terminada. O conto do Barba-azul é
útil para todas as mulheres, independente de
serem jovens e terem acabado de
saber da existência do predador ou de terem sido
acossadas e acuadas por ele décadas
a fio, encontrando-se, afinal, preparadas para
um confronto final e decisivo com
ele.
A irmã mais nova
representa um potencial criativo dentro da psique. Algum
aspecto que está se aproximando de
uma vida exuberante e reprodutiva. Ocorre,
porém, um desvio quando ela
concorda em se tornar presa de um homem perverso
em virtude de não estarem intatos
seus instintos para perceber e tomar outra decisão.
Do ponto de vista psicológico, as
meninas e os meninos são como que
dormentes para o fato de que eles próprios possam ser as
presas. Embora às vezes
nos pareça que a vida seria muito mais fácil e menos
dolorida se todos os seres
humanos nascessem totalmente em estado de alerta, isso
não acontece. Nós todos
nascemos anlagen, como o potencial no núcleo
de uma célula: em biologia, a Anlage
é a parte da célula caracterizada como “aquilo que se
tornará”. Dentro da Anlage está
a substância fundamental que, com o
tempo, irá se desenvolver fazendo com que nos
tornemos uma pessoa inteira.
Portanto, nossas vidas, enquanto mulheres, consistem em
acelerar a Anlage. O
conto do Barba-azul fala do despertar e da educação desse
núcleo psíquico, dessa
célula luminosa. Em prol dessa educação, a irmã mais nova
concorda em se casar
com uma força que ela acredita ser muito distinta. O
casamento nos contos de fadas
simboliza a procura de um novo status, o desdobramento de uma nova camada da
psique.
No entanto, a jovem esposa se iludiu. A princípio, ela
sentia medo do Barbaazul.
Estava desconfiada. Um pouco de diversão no bosque faz
com que ela descarte
essa intuição. Quase todas as mulheres já passaram por
essa experiência pelo menos
uma vez. Conseqüentemente, ela se convence de que o
Barba-azul não é perigoso,
mas só excêntrico e cheio de idiossincrasias. Como sou
boba! Por que me repugna
tanto aquela barbinha azul? Sua natureza selvagem, porém,
já farejou a situação e
sabe que o homem de barba azul é mortal, enquanto a
psique ingênua descarta essa
sabedoria interior.
Esse erro de raciocínio é quase rotineiro numa mulher tão
jovem cujos
sistemas de alarme ainda não estão totalmente
desenvolvidos. Ela é como um filhote
de lobo, sem mãe, que rola e brinca na clareira, sem
perceber o lince de quase 50
quilos que se aproxima vindo das sombras. No caso de uma
mulher mais velha que
está tão isolada do aspecto selvagem que mal chega a
ouvir os avisos do seu íntimo,
ela também segue em frente, com um sorriso ingênuo.
Bem que poderíamos nos perguntar se haveria como evitar
tudo isso. Como no
mundo animal, a menina aprende a ver o predador através
dos ensinamentos da mãe
e do pai. Sem a amorosa orientação dos pais, ela
certamente será uma presa
prematura na vida. Em retrospectiva, quase todas nós,
pelo menos uma vez na vida,
passamos pela experiência de uma idéia irresistível ou de
uma pessoa meio
deslumbrante entrando pela nossa janela no meio da noite
para nos apanhar de
surpresa. Mesmo que estejam usando máscaras de esquiar,
que tragam uma faca
entre os dentes e um saco de dinheiro jogado sobre os
ombros, nós ainda assim
acreditamos quando eles nos dizem que trabalham no ramo
bancário.
Contudo, mesmo com uma criação criteriosa por parte dos
pais, a jovem pode,
especialmente a partir dos doze anos de idade, ser
seduzida de modo a se afastar das
suas verdades por grupos de colegas, forças culturais ou
pressões psíquicas,
começando assim a assumir riscos com bastante imprudência
no esforço de descobrir
as coisas por si mesma. Ao trabalhar com adolescentes
mais velhos que vivem
convencidas de que o mundo é bom se ao menos elas
conseguirem lidar com ele
corretamente, sempre me sinto como um velho cão grisalho.
Tenho vontade de pôr as
patas diante dos olhos e gemer, porque vejo o que elas
não vêem e sei, especialmente
se elas forem determinadas e exuberantes, que elas vão
insistir em se envolver com o
predador pelo menos uma vez antes que sejam despertadas
com um choque.
No início das nossas vidas, nosso ponto de vista feminino
é muito ingênuo, o
que quer dizer que nossa compreensão emocional do que
está oculto é muito tênue.
No entanto, é assim que todas nós começamos. Somos
ingênuas e nos convencemos a
entrar em situações muito confusas. Não ser iniciada nos
detalhes dessas questões
significa estar num estágio da nossa vida em que somos
propensas a perceber apenas
o que está às claras.
Entre os lobos, quando a mãe deixa os filhotes para ir
caçar, os pequenos
tentam acompanhá-la para fora da toca, pela trilha
abaixo. A mãe rosna para eles,
investe contra eles e apavora os filhotes até que eles
voltem atabalhoadamente para
dentro da toca. A mãe sabe que os filhotes ainda não têm
condição de pesar e avaliar
outras criaturas. Eles não sabem quem é um predador e
quem não é. Com o tempo,
ela irá ensiná-los, com rigidez e eficácia.
À semelhança dos filhotes de lobo, as mulheres precisam
de uma iniciação
semelhante, que lhes revele que o
mundo interior assim como o exterior não são
sempre locais propícios. Muitas mulheres não chegam a
receber os ensinamentos
básicos a respeito de predadores que a mãe loba dá aos
filhotes como, por exemplo,
se for ameaçador e maior do que você, fuja; se for mais
fraco, pense no que quer
fazer; se estiver doente, deixe-o em paz; se tiver
espinhos, veneno, presas ou garras
aguçadas, recue e vá na direção oposta; se tiver um
cheiro bom mas estiver cercado
de garras de ferro, passe direto.
A irmã mais nova na história não é só ingênua quanto aos
seus próprios
processos mentais e totalmente
ignorante quanto ao aspecto assassino da sua própria
psique, mas é também capaz de ser seduzida pelos prazeres
do ego. E por que não?
Todas nós queremos tudo maravilhoso. Toda mulher quer
montar um cavalo
enfeitado com sinos e sair
cavalgando pelos campos sem fim e pela floresta sensual.
Todos os seres humanos querem atingir um paraíso
prematuro aqui na terra. O
problema é que o ego deseja sentir-se fantástico,
enquanto um anseio pelo
paradisíaco, quando aliado à ingenuidade, não nos deixa
realizadas, mas nos
transforma, sim, em alvo para o
predador.
Essa aceitação do casamento com o
monstro é na realidade decidida quando as
meninas são muito novas, geralmente antes dos cinco anos
de idade. Elas são
ensinadas a não enxergar e, em vez
disso, a "dourar" todo tipo de esquisitice, quer
seja agradável quer não. É em conseqüência desse
treinamento que a irmã mais nova
consegue dizer, "Bem, até que a barba dele não é tão azul assim". Esse treinamento
básico para que as mulheres "sejam boazinhas" faz com que
elas ignorem sua
intuição. Nesse sentido, elas de
fato recebem lições específicas para que se submetam
ao predador. Imaginem uma loba ensinando seus filhotes a
"serem bonzinhos" diante
de uma doninha enfurecida ou de uma astuciosa cascavel.
No conto, até mesmo a mãe é cúmplice. Ela vai ao
piquenique, "acompanha" as
filhas no passeio. Ela não diz uma palavra que recomende
cautela a qualquer uma das
filhas. Seria possível afirmar que a mãe biológica ou a
mãe interior está adormecida
ou é ela própria ingênua, como ocorre muitas vezes com
meninas muito novas ou
com mulheres que não foram criadas pela mãe.
É interessante observar que, no conto, as irmãs mais
velhas demonstram certa
conscientização quando dizem que não gostam do
Barba-azul, muito embora ele
tenha acabado de lhes proporcionar diversão e atenções
num estilo muito romântico
e paradisíaco. A história dá a impressão de que alguns
aspectos da psique,
representados pelas irmãs mais
velhas, são um pouco mais desenvolvidos em termos
de insight, elas têm algum
"conhecimento" que as avisa para não romantizar o
predador. A mulher iniciada presta atenção às irmãs mais
velhas na psique; elas a
protegem do perigo com seus avisos. A mulher não-iniciada
não lhes dá atenção; ela
ainda está excessivamente identificada com a ingenuidade.
Digamos, por exemplo, que uma mulher ingênua insista em
escolher mal seus
parceiros. Em algum ponto da sua
mente ela sabe que esse modelo de
comportamento é infrutífero, que deveria parar e seguir
valores diferentes. Muitas
vezes ela até sabe como deve prosseguir. No entanto, há
algo de irresistível, uma
espécie de Barba-azul hipnótico, que faz com que continue
seguindo o padrão
destrutivo. Na maioria dos casos, a
mulher sente que, se apenas se mantiver fiel ao
velho modelo um pouco mais, ora, sem dúvida a sensação
paradisíaca que procura
aparecerá no próximo batimento do seu coração.
Num outro extremo, uma mulher envolvida numa dependência
química tem
com o máximo de nitidez, no fundo da
mente, um conjunto de irmãs mais velhas que
lhe dizem, “Não! De jeito nenhum! Isso é ruim para a
cabeça e ruim para o corpo. Nós
nos recusamos a
continuar.” No entanto, o desejo de encontrar o paraíso atrai a
mulher para o casamento com o Barba-azul, o traficante das
viagens psíquicas.
Qualquer que seja o dilema em que
se encontre a mulher, as vozes das irmãs
mais
velhas na sua psique continuam a lhe recomendar consciência e sensatez
nas
suas escolhas. Elas representam aquelas vozes do
fundo da mente que sussurram as
verdades que uma
mulher pode desejar evitar uma vez que elas acabem com sua
fantasia do Paraíso Encontrado.
E assim
ocorre o casamento fatal, a fusão da doce ingenuidade com a escuridão
covarde. Quando o Barba-azul sai em viagem, a jovem não
percebe que, embora ele a
exorte a fazer tudo o que
desejar — com exceção daquela única proibição —, ela está
vivendo menos, não mais. Muitas mulheres viveram
literalmente o conto do Barbaazul.
Elas se casam
enquanto ainda são ingênuas a respeito de predadores, e
escolhem um parceiro que é destrutivo para com a sua vida.
Elas se sentem
determinadas a “curar” aquele a quem
amam. Estão, sob certo aspecto, “brincando de
casinha”.
Poderíamos dizer que elas passaram muito tempo dizendo que a barba dele
afinal não é tão azul assim.
Uma
mulher capturada desse modo acaba percebendo que suas esperanças de
uma vida razoável para si mesma e para seus filhos
diminuem cada vez mais. É de se
esperar que ela abra
a porta do quarto onde jaz toda a destruição da sua vida. Embora
possa ser o parceiro físico da mulher quem a prejudique e
arrase sua vida, o predador
inato dentro da sua
própria psique concorda com isso. Enquanto a mulher for forçada
a acreditar que é indefesa e/ou for treinada para não
registrar no consciente o que
sabe ser verdade, os
impulsos e dons femininos da sua psique continuarão a ser
erradicados.
Quando uma alma jovem se
casa com o predador, ela é capturada ou reprimida
durante
uma fase da sua vida que deveria ser de desdobramento. Em vez de viver
livremente, ela começa a viver falsamente. A promessa
enganosa do predador diz que
a mulher será rainha de
algum modo, quando de fato o que se planeja é seu
assassinato.
Há uma saída para evitar isso tudo, mas é preciso que se tenha a chave.
A
chave do conhecimento: a importância de farejar
Ah, e essa chavinha minúscula? Ela é o
acesso ao segredo que todas as
mulheres sabem e
ainda assim não sabem. A chave é tanto uma permissão quanto um
apoio para que ela conheça os segredos mais profundos, mais
obscuros da psique,
nesse caso aquilo que degrada e
destrói estupidamente o potencial de uma mulher.
O
Barba-azul prossegue em seu plano destrutivo ao instruir a esposa a se
comprometer psiquicamente. "Faça o que quiser", diz
ele. Ele sugere à mulher uma
falsa sensação de
liberdade. Ele insinua que ela pode se alimentar à vontade e se
deliciar com paisagens bucólicas, pelo menos dentro dos
limites do seu território. Na
realidade, porém, ela
não é livre porque não lhe é permitido registrar o conhecimento
sinistro a respeito do predador, muito embora bem no fundo
da psique ela já
compreenda bem a questão.
A mulher ingênua concorda em permanecer "na ignorância".
Mulheres fáceis
de serem logradas e aquelas com
instintos fragilizados ainda se voltam, como as
flores,
para o lado em que o sol se apresenta. A mulher ingênua ou magoada pode
então, com extrema facilidade, ser seduzida com
promessas de conforto, diversão e
arte, promessas de
inúmeros prazeres, de uma ascensão social aos olhos da família,
das colegas, ou de maior segurança, amor eterno ou sexo
ardente.
O Barba-azul proíbe a jovem de usar a única chave que a
traria de volta à
consciência. Proibir uma mulher de usar a chave que leva
à consciência é o mesmo
que lhe arrancar a Mulher Selvagem,
seu instinto natural de curiosidade e sua
descoberta do que “se
esconde por baixo”. Sem o conhecimento selvagem, a mulher
está
desprovida de proteção adequada. Se ela tentar obedecer à ordem do
Barba-azul
no sentido de não usar a chave, estará escolhendo a morte
para seu espírito. Ao optar
por abrir a porta de acesso ao
horripilante quarto secreto, ela escolhe a vida.
No conto, as
irmãs vêm fazer uma visita e sentem “como todo mundo, muita
curiosidade”.
A esposa fala em tom alegre, “podemos fazer o que quisermos”, com
exceção de
uma coisa. As irmãs resolvem fazer um jogo para descobrir em que porta a
chavinha
serve. Elas mais uma vez têm o impulso correio no sentido da
consciência.
Pensadores no campo da psicologia, como Freud e
Bettelheim, interpretaram
episódios semelhantes aos encontrados
no conto do Barba-azul como uma punição
psicológica pela curiosidade sexual
das mulheres.4 Foi atribuída à curiosidade
feminina uma
conotação negativa, enquanto a masculina era chamada de curiosidade
investigativa.
As mulheres eram abelhudas, enquanto os homens eram indagadores.
Na
realidade, a trivialização da curiosidade das mulheres, que faz com que
elas se
assemelhem mais a espias chatas e maçantes, representa
uma negação do insight, da
intuição e
dos pressentimentos das mulheres. Ela nega todos os seus sentidos. Ela
tenta
atacar sua força fundamental.
Portanto, considerando-se que as
mulheres que ainda não abriram a porta
proibida costumam ser as mesmas que
vão direto para os braços do Barba-azul, não
foi por
acaso que as irmãs mais velhas preservaram intacto o instinto selvagem
da
curiosidade. Essas são as mulheres-sombras da psique
individual feminina, as
contrações e fisgadas nas profundezas
da mente de uma mulher que fazem com que
ela se lembre, que lhe
restituem a atitude correta para com o que é importante.
Encontrar a
mínima porta é importante; desobedecer às ordens do predador é
importante;
descobrir o que esse quarto abriga de especial é fundamental.
No passado,
as portas eram feitas em sua maioria de pedra, mas também de
madeira.
Acreditava-se que o espírito da pedra ou da madeira permanecia na porta,
e
ele também era convocado a servir de guardião do
aposento. Nos primeiros tempos,
havia mais portas nos túmulos do que
nas casas, e a própria imagem da porta já
indicava que
alguma coisa de valor espiritual jazia ali dentro, ou que ali dentro
havia
algo que devia ser mantido preso.
A porta no
conto é descrita como uma barreira psíquica, uma espécie de
guarda
colocado à frente do segredo. Esse guarda que reside na pedra ou na
madeira
nos lembra novamente a reputação do predador como mago —
uma força psíquica
que nos envolve e confunde como se por
mágica, impedindo que tomemos
conhecimento do que já sabemos. As
mulheres reforçam essa barreira ou porta
quando caem num tipo de
estímulo negativo que as adverte para não pensar ou
mergulhar
fundo demais, pois “você pode ter uma surpresa desagradável”. Para
derrubar
esse obstáculo, é preciso que se aplique o antídoto mágico correio. E o
que
se aplica encontra-se no símbolo da chave.
Fazer a
pergunta certa é o ponto central da transformação — nos contos de
fadas, na
psicanálise e na individuação. A pergunta correta provoca a germinação
da
consciência. A pergunta bem-formulada sempre emana de uma
curiosidade essencial
a respeito do que está por trás. As
perguntas são as chaves que fazem com que as
portas
secretas da psique se escancarem.
Embora as irmãs não saibam se o que
se encontra atrás da porta é um tesouro
ou uma imitação grosseira, elas
recorrem aos seus instintos perfeitos para fazer a
pergunta
psicológica exata, "Onde você acha que fica essa porta, e o que poderia
estar
atrás dela?"
É a essa
altura que a natureza ingênua começa a amadurecer, a questionar. "O
que está por trás do visível? O que faz com que aquela
sombra cresça na parede?" A
natureza jovem e ingênua
começa a compreender que, se existe algo de secreto, se
existe algo de sombrio, se existe algo de proibido, é
preciso que ele seja examinado.
Aquelas que quiserem
desenvolver a consciência perseguem tudo que fica por trás do
que é facilmente observável: o gorjeio invisível, a janela
suja, a porta que range, uma
fresta de luz por baixo
da soleira. Elas perseguem esses mistérios até que a substância
da questão lhes sejarevelada.
Como
veremos, a capacidade de suportar o que se vê é a visão vital que faz
com
que a mulher volte a sua natureza profunda, para
ali receber sustentação em todos os
pensamentos,
sentimentos e atos.
O noivo animal
Portanto,
embora a jovem tente seguir as ordens do predador e concorde em
manter sua ignorância acerca do segredo oculto nos
subterrâneos do castelo, ela só
pode agir assim
durante um determinado período. Afinal ela apresenta a chave, a
pergunta, à porta e descobre a horrenda carnificina em
algum ponto da sua vida
profunda. E essa chave, esse
minúsculo símbolo da vida, de repente não pára de
sangrar,
não pára de soltar o grito de que há algo de errado. Uma mulher pode
tentar
se esconder para não ver as devastações da
sua vida, mas o sangramento, a perda da
energia da
vida, continuará até que ela reconheça a real natureza do predador e o
domine.
Quando as mulheres abrem as
portas das suas próprias vidas e examinam o
massacre
nesses cantos remotos, na maior parte das vezes elas descobrem que
estiveram permitindo o assassinato de seus sonhos,
objetivos e esperanças mais
cruciais. Encontram sem
vida idéias, sentimentos e desejos; aquilo que um dia foi
gracioso e promissor está agora esgotado até sua última
gota de sangue. Se esses
sonhos e esperanças
estiverem vinculados ao desejo de um relacionamento, de uma
realização, de obter sucesso, ou de uma obra de arte,
quando ocorre essa apavorante
descoberta na psique,
podemos ter certeza de que o predador natural, também
freqüentemente simbolizado nos sonhos como o noivo animal,
esteve trabalhando
metodicamente na destruição dos
desejos mais caros à mulher.
A personagem do noivo
animal é um marco na psique, representando algo
perverso
disfarçado como algo benévolo. Essa caracterização ou algo dela
aproximado está sempre presente quando uma mulher nutre
pressentimentos
ingênuos acerca de alguma coisa ou
de alguém. Quando uma mulher tenta ignorar os
fatos
das suas próprias devastações, seus sonhos noturnos gritarão avisos para
ela,
avisos e exortações para acordar! Pedir ajuda!
Fugir! Ou dar o golpe final! Com o
passar dos anos,
soube de muitos sonhos de mulheres com essa característica do
noivo animal ou essa aura de
as-coisas-não-são-tão-boas-quanto-parecem. Uma
mulher
sonhou com um homem belo e encantador, mas, quando baixou os olhos, viu
que começava a se desenrolar da sua manga uma
ameaçadora espiral de arame
farpado. Outra mulher
sonhou que estava ajudando um velho a atravessar a rua, e o
velho de repente sorriu diabolicamente para ela e
"derreteu-se" no seu braço,
causando uma queimadura
profunda. Ainda uma outra sonhou que estava fazendo
uma
refeição com um amigo desconhecido cujo garfo atravessou a mesa voando
para
feri-la mortalmente.
Essa incapacidade de ver, de compreender, de perceber que
nossos desejos
interiores não são concomitantes com
nossos atos exteriores — é esse o rastro
deixado
pelo noivo animal. A presença desse fator na psique esclarece o motivo
pelo
qual as mulheres que dizem desejar um
relacionamento fazem tudo que podem para
sabotar um
relacionamento afetuoso. É assim que mulheres que fixam metas para
estar aqui, ali ou no lugar que seja até uma certa data
nem mesmo dão o primeiro
passo naquela direção, ou
abandonam a jornada ante a primeira dificuldade. É assim
que todos os adiamentos dão origem ao ódio a si mesma;
todos os sentimentos de
vergonha são reprimidos e
colocados de lado para se exacerbarem; todos os
recomeços
tão necessários e todos os finais já há muito atrasados não se
realizam.
Onde quer que o predador se esgueire e
atue, tudo é descarrilado, demolido e
decapitado.
O noivo animal é um símbolo amplamente disseminado nos
contos de fadas,
sendo que o enredo obedece ao
seguinte padrão: um desconhecido corteja uma jovem
que
concorda em casar com ele, mas antes do dia da cerimônia ela vai dar um
passeio
no bosque, perde-se e, quando escurece,
sobe numa árvore para se proteger de
predadores.
Enquanto espera que a noite transcorra, chega por ali seu prometido com
uma pá no ombro. Algo em seu futuro marido deixa
transparecer que ele não é
realmente um ser humano.
Às vezes, pode ser uma deformação no pé, na mão, no
braço
ou algo em seu cabelo que é decididamente estranho e que o denuncia.
Ele começa a cavar uma cova embaixo da mesma árvore em
que ela se
encontra, cantarolando e resmungando o
tempo todo sobre como vai matar sua
última noiva e
enterrá-la nessa cova. A moça apavorada fica escondida a noite inteira
e, pela manhã, quando o noivo se foi, ela corre para
casa, conta a história para o pai e
os irmãos, e os
homens armam uma emboscada para o noivo animal e o matam.
Esse é um poderoso processo arquetípico na psique das
mulheres. A mulher
tem uma percepção adequada e,
embora ela também a princípio concorde em
desposar o
predador natural da psique, embora ela também passe um período perdida
na psique, ela no final consegue sair pois é capaz de
penetrar na verdade total, é
capaz de manter-se
consciente da existência dele e de tomar uma atitude para
resolver o caso.
Ah, é então que chega a
etapa seguinte, ainda mais difícil: a de ser capaz de
suportar o que se vê, toda a autodestruição e
entorpecimento.
Cheiro de sangue
No
conto, as irmãs fecham com violência a porta da câmara da morte. A
jovem
esposa tem os olhos fixos no sangue na chave.
Um gemido sobe de dentro dela.
“Preciso limpar esse
sangue, ou ele saberá!”
Agora o self ingênuo tem
conhecimento de uma força assassina solta dentro da
psique.
E o sangue na chave é sangue de mulher. Se fosse apenas sangue do
sacrifício
de fantasias frívolas, haveria na chave
apenas uma pequena marca. Trata-se, porém,
de algo
muito mais sério pois o sangue representa o extermínio dos aspectos mais
profundos e íntimos da vida criativa e da alma.
Nesse estado, a mulher está perdendo sua energia para
criar, quer sejam
soluções para amenizar questões da
sua vida como a educação, a família, as amizades,
quer
se trate dos seus objetivos, seu desenvolvimento pessoal, sua arte.
Isso não é um
mero adiamento, pois prossegue por
semanas e meses a fio. A mulher parece
arrasada,
talvez cheia de idéias, mas com uma anemia profunda e cada vez mais
incapaz de realizá-las.
O sangue nesse conto não é o sangue
menstrual, mas sangue arterial, da alma.
Ele não mancha só a chave;
ele escorre pela persona inteira. O vestido que está
usando bem
como todos os outros no guarda-roupa ficam manchados. Na psicologia
arquetípica,
a roupa simboliza a presença externa. Ela é a máscara que a pessoa
mostra ao
mundo. Ela esconde muita coisa. Com disfarces e enchimentos psíquicos
adequados,
tanto os homens quanto as mulheres podem apresentar ao mundo uma
persona quase perfeita, uma fachada
quase perfeita.
Quando a chave que chora — ou a pergunta que clama —
mancha nossas
personae,
não
conseguimos mais esconder nossas dificuldades. Podemos dizer o que
quisermos,
mostrar a expressão mais sorridente, mas, uma vez tendo visto a verdade
revoltante
da câmara da morte, não podemos mais fingir que ela não existe. E ver a
verdade faz
com que esgotemos nossa energia ainda mais. É doloroso; é um corte na
artéria.
Precisamos tentar corrigir imediatamente esse terrível estado.
Portanto,
nesse conto de fadas, a chave também funciona como recipiente. Ela
contém o
sangue, que é a recordação do que se viu e do que se sabe. Para as
mulheres, a
chave sempre simboliza o acesso a um mistério ou ao conhecimento. Nos
contos de
fadas, a chave é muitas vezes representada por palavras como, por
exemplo,
“Abre-te, Sésamo”, que Ali Babá grita para uma montanha anfractuosa,
fazendo com
que a mesma ribombe e se abra para ele poder entrar. Num estilo mais
picaresco,
nos estúdios de Disney, a fada-madrinha de Cinderela entoa
“Bibbitybobbity-
boo!”, e abóboras viram carruagens e camundongos,
cocheiros.
Nos mistérios de Elêusis, a chave era escondida sobre a
língua, dando a
entender que o enigma, a pista, o indício estavam num
conjunto especial de palavras,
de perguntas-chave. E as palavras de
que as mulheres mais precisam em situações
semelhantes
às descritas na história do Barba-azul são as seguintes: O que está
atrás
da porta? O que não é como aparenta ser? O que eu sei no
fundo de mim mesma que
preferia não saber? Que parte de mim
foi morta ou está agonizando?
Todas essas perguntas são chaves. E é
muito provável que as respostas a essas
quatro questões apareçam manchadas de
sangue. O aspecto assassino da psique, cuja
tarefa
consiste parcialmente em impedir que ocorra a conscientização,
continuará a
fazer verificações ocasionais e a arrancar ou envenenar
qualquer novo rebento. É a
sua natureza. É a sua função.
Por isso,
num sentido positivo, é somente a insistência do sangue na chave que
faz com que
a psique grave o que viu. É que existe uma censura natural em todos os
acontecimentos
negativos e dolorosos que ocorrem em nossas vidas. O ego censor
sem sombra
de dúvida deseja esquecer que viu o quarto, que viu os cadáveres. É por
isso que a
esposa do Barba-azul tenta esfregar a chave com o esfregão de crina. Ela
tenta tudo o
que conhece, todos os remédios para lacerações e ferimentos profundos
da medicina
popular das mulheres: teia de aranha, cinzas de fogo — todos associados
à urdidura
da vida e da morte pelas Parcas. No entanto, ela não consegue cauterizar
a
chave; nem consegue encerrar o processo fingindo que ele
não ocorre. Ela não
consegue fazer a chavinha parar de
chorar sangue. Paradoxalmente, à medida que
sua vida
antiga está morrendo e até mesmo os melhores remédios não conseguem
esconder
esse fato, ela está alerta para sua perda de sangue e, portanto, apenas
começando a
viver.
A mulher previamente ingênua precisa encarar o que
ocorreu. O assassinato
cometido pelo Barba-azul de todas as
suas esposas "curiosas" é o assassinato da
criatividade
feminina, aquela que tem o potencial para desenvolver todos os tipos de
aspectos
novos e interessantes. O predador é especialmente agressivo ao armar
emboscadas
para a natureza selvagem da mulher. No mínimo, ele procura escarnecer
da ligação da mulher com seus insights, suas inspirações, sua persistência e tudo o
mais: e, no máximo, ele tenta
romper essa ligação.
Uma outra mulher com quem trabalhei, pessoa talentosa e
inteligente, contoume
a história da sua avó que morava no Meio-Oeste. A imagem
de felicidade dessa
avó consistia em tomar o trem até Chicago usando um belo
chapéu e sair caminhando
pela Michigan Avenue, olhando todas as vitrinas e
sentindo-se elegante. Por um
motivo ou outro, ou talvez pelo destino, ela se casou
com um homem do campo. Eles
foram morar no meio da região tritícola, e a mulher
começou a definhar na elegante
casa de fazenda que era pequena, exatamente do tamanho
certo, com todos os filhos
certos e o marido certo. Ela já não tinha mais tempo
para a vida "frívola" que havia
levado no passado. "Filhos demais." "Serviços domésticos
demais."
Um dia, anos
mais tarde, depois de lavar o piso da cozinha e da sala de estar
com as próprias mãos, ela vestiu
sua melhor blusa de seda, abotoou sua saia longa e
colocou seu chapelão na cabeça.
Empurrou o cano da espingarda do marido contra o
céu da boca e puxou o gatilho.
Qualquer mulher viva sabe por que ela lavou o chão
antes.
Uma alma faminta pode ficar tão
cheia de dor que a pessoa não consegue
suportar mais. Como as mulheres têm
uma necessidade profunda da alma se
expressar em seus próprios estilos
de alma, elas precisam se desenvolver e florescer
de um modo que faça sentido para
elas, sem serem molestadas pêlos outros. Nesse
sentido, a chave com o sangue
poderia também representar as linhagens femininas
que vieram antes de cada mulher.
Quem dentre nós não conhece pelo menos uma
mulher amada que perdeu seus
instintos para fazer boas opções na vida e foi, assim,
forçada a viver uma vida alienada
ou pior? Talvez você mesma seja essa mulher.
Uma das questões menos discutidas a
respeito do processo de individuação é a
de que, à medida que se lança luz
sobre as trevas da psique com a maior intensidade
possível, a sombra, onde a luz não
alcança, fica ainda mais escura. Portanto, quando
iluminamos alguma parte da psique,
disso resulta uma escuridão mais profunda com
a qual temos de lutar. Não se pode
deixar de lado essa escuridão. A chave, ou as
perguntas, não pode ser ocultada
nem esquecida. As perguntas precisam ser feitas.
Elas precisam obter resposta.
O trabalho mais profundo é
geralmente o mais sombrio. Uma mulher corajosa,
uma mulher que procura ser sábia,
irá urbanizar os terrenos psíquicos mais pobres,
pois, se ela construir apenas nos
melhores terrenos da psique, terá uma visão mínima
de quem realmente é. Portanto, não
tenha medo de investigar o pior. Isso só lhe
garante um aumento no poder da sua
alma.
É nesse tipo de
urbanização psíquica que a Mulher Selvagem brilha. Ela não
tem medo da treva mais profunda
pois na realidade consegue ver no escuro. Ela não
tem medo de vísceras, dejetos,
podridão, fedor, sangue, ossos frios, moças
moribundas e maridos assassinos.
Ela tem condições de ver tudo, de suportar tudo,
de ajudar. E é isso o que a irmã
mais nova no conto do Barba-azul está aprendendo.
Os esqueletos na câmara
representam, sob a ótica mais positiva, a força
indestrutível do feminino.
Arquetipicamente, os ossos representam aquilo que não
pode nunca ser destruído. A
simbologia dos ossos nas histórias revela essencialmente
que existe algo na psique que é
difícil de destruir. Nosso único bem que é difícil de
destruir é nossa alma.
Quando falamos da essência
feminina, estamos realmente falando da alma
feminina. Quando falamos de corpos
espalhados no subterrâneo, estamos afirmando
que algo aconteceu à força da alma e
no entanto, muito embora sua vitalidade
exterior tenha sido roubada, muito
embora sua vida tenha essencialmente sido
esmagada, ela não foi destruída por
completo. Ela pode voltar a viver.
Ela volta a viver através da jovem esposa e das suas
irmãs, que afinal
conseguem romper com o antigo modelo de ignorância e
contemplar o horror sem
desviar o olhar. Elas são capazes de ver e de suportar o
que vêem.
Aqui estamos novamente no lugar de La Loba, na caverna do arquétipo da
mulher dos ossos. Aqui temos restos do que um dia foi uma
mulher inteira. Contudo,
ao contrário dos aspectos cíclicos da vida e da morte do
arquétipo da Mulher
Selvagem, que toma a vida que está pronta para morrer, a
incuba e a devolve ao
mundo, o Barba-azul apenas mata a mulher e a desmembra
até ela se resumir a nada
além de ossos. Ele não lhe deixa beleza, amor,
identidade, e por isso nenhuma
capacidade de agir em sua própria defesa. Para consertar
esse aspecto, nós, enquanto
mulheres, devemos contemplar o assassino que nos mantém
sob controle, observar
os resultados do seu trabalho medonho, registrar tudo
conscientemente, mantê-lo na
consciência, e depois agir.
Os símbolos do calabouço, da masmorra e da caverna estão
todos interrelacionados.
Eles são antigos ambientes iniciáticos: um lugar ao qual
ou através do
qual a mulher desce até o(s) assassinado(s), onde
desrespeita tabus para descobrir a
verdade e de onde, através da inteligência e/ou do
sofrimento, sai vitoriosa ao
expulsar, transformar ou exterminar o assassino da
psique. O conto delineia para nós
as tarefas com instruções claras: descubra os corpos,
siga os instintos, veja o que
estiver vendo, reúna energia psíquica, acabe com a
energia destrutiva.
Se uma mulher não examinar essas questões do seu próprio
entorpecimento e
assassinato, ela permanecerá obediente aos ditames do
predador. Uma vez que ela
abra aquele aposento na psique que mostra como está morta
e retalhada, ela
perceberá como diversas partes da sua natureza feminina e
de sua psique instintiva
foram extirpadas e tiveram uma morte indigna por trás de
uma fachada de
prosperidade. Agora que ela percebe isso, agora que
registra como está presa e
quanto da sua vida psíquica está em jogo, agora, sim, ela
pode fazer algo ainda mais
poderoso.
Recuar
e dar a volta
Recuar e dar a volta são movimentos de
um animal que se enfurna na terra
para fugir e
aparece de novo às costas do predador. Essa é a manobra psíquica que a
esposa do Barba-azul efetua para restabelecer o domínio
sobre sua própria vida.
O Barba-azul, ao descobrir o
que considera a falsidade da esposa, a segura pelo
cabelo
e a arrasta escada abaixo. "Agora é a sua vez!" ruge ele. O elemento
assassino
do inconsciente se levanta e ameaça
destruir a mulher consciente.
A análise, a
interpretação dos sonhos, o autoconhecimento, a investigação,
todas essas atividades são realizadas por serem meios de
recuar e de dar a volta. Elas
são meios de mergulhar
e vir à tona por trás da questão, vendo-a de uma perspectiva
diferente. Sem a capacidade de ver, de ver realmente,
deixa-se escapar o que foi
aprendido a respeito do
self do ego e do aspecto numinoso do Self.
Na
história do Barba-azul, a psique tenta agora evitar ser morta. Tendo
perdido a ingenuidade, ela se tornou astuciosa. Ela
pede tempo para se compor — em
outras palavras,
tempo para se recompor para o combate final. Na realidade externa,
encontramos mulheres planejando suas fugas, seja de um
antigo estilo destrutivo, de
um amante, seja de um
emprego. Ela pára para ganhar tempo, ela espera a hora
certa, ela planeja sua estratégia e reúne suas forças
interiores antes de realizar uma
mudança externa. Às
vezes é exatamente esse tipo de ameaça imensa do predador
que faz com que a mulher deixe de ser um
amor de pessoa que se adapta a tudo e
passa a ter o
olhar suspeito dos desconfiados.
Por ironia, os
dois aspectos da psique, o do predador e o do jovem potencial,
chegam ao ponto de ebulição. Quando a mulher percebe que
foi presa, tanto no
mundo interior quanto no
exterior, ela mal consegue tolerar a situação. É um golpe
na raiz de quem ela realmente é, e ela planeja, como seria
sua obrigação, destruir a
força predatória.
Enquanto isso, seu complexo predatório está furioso por ela
ter aberto a porta
proibida e começa a dar suas
voltas, tentando bloquear todos os caminhos de fuga.
Essa
força destrutiva torna-se assassina e diz à mulher que ela violou o que
havia de
mais sagrado e por isso deve morrer.
Quando aspectos opostos da psique de uma mulher atingem
seu ponto de
saturação, a mulher pode sentir um
cansaço incrível pois sua libido está sendo sugada
em
duas direções opostas. No entanto, mesmo uma mulher que esteja morta de
cansaço com suas lutas infelizes, não importa quais
sejam, muito embora ela esteja
com a alma exausta,
ela ainda assim precisa planejar sua fuga. Ela precisa se forçar a
seguir adiante seja como for. Esse período crítico
assemelha-se a ficar ao relento em
temperatura
abaixo de zero um dia e uma noite. Para sobreviver, não se pode ceder à
fadiga. Ir dormir significa morte certa.
Essa é a iniciação mais profunda, a iniciação de uma mulher
nos sentidos
instintivos correios através dos quais
o predador é identificado e banido. É esse o
momento
no qual a mulher cativa passa da condição de vítima para a condição de
alguém com a mente afiada, os olhos astuciosos, a
audição apurada. É essa a hora na
qual um esforço
quase sobre-humano consegue impelir a psique exausta para que
realize sua última tarefa. As perguntas-chave continuam a
ajudar, pois a chave
continua a verter seu sangue
sábio apesar de o predador proibir a conscientização.
Sua mensagem maníaca é a de que a mulher morra por querer a
consciência. A
resposta da jovem consiste em fazer
com que ele pense que ela se dispõe a ser sua
vítima
enquanto está de fato planejando sua destruição.
Entre
os animais diz-se que existe uma misteriosa dança psíquica entre o
predador e a presa. Diz-se que, se a presa mantiver uma
espécie de olhar servil, e um
certo estremecimento
que cause um leve ondular da pele sobre os músculos, ela
estará reconhecendo sua fraqueza diante do predador e
concordando em ser sua
vítima.
Existe
a hora de estremecer e correr, e existe a hora de não agir assim. Nesse
momento específico, uma mulher não deve estremecer e
não deve rastejar. O pedido
da jovem esposa do
Barba-azul por algum tempo para se recompor não é um sinal de
submissão ao predador. É seu modo astucioso de reunir
energias para usar da força.
Como certas criaturas
da floresta, ela está armando um bote contra o predador. Ela
mergulha no chão para escapar dele e ressurge
inesperadamente às suas costas.
Como dar o grito
Quando
o Barba-azul chama a esposa aos berros e ela tenta desesperadamente
ganhar tempo, ela está tentando reunir forças para
superar seu carcereiro, quer ele
seja,
especificamente ou em combinação com outros fatores, uma religião, um
marido,
uma família, uma cultura destrutiva, quer se
trate dos complexos negativos da
mulher.
A mulher do Barba-azul apela com desespero, mas com
astúcia. "Por favor",
sussurra ela, "permita que eu
me prepare para a morte."
"Está bem", rosna ele. "Mas
prepare-se."
A mulher convoca seus irmãos psíquicos. O que eles
representam na psique de
uma mulher? Eles são os propulsores
mais musculosos, os elementos de natureza
mais agressiva da psique.
São a força interior à mulher que sabe agir quando chega a
hora de
matar. Embora essa qualidade seja retratada nessa história por meio do
sexo
masculino, ela poderia ser atribuída a qualquer um dos
sexos — bem como a objetos
que são neutros como, por exemplo, a
montanha que se fecha sobre o intruso, ou o
sol que
desce por um instante a fim de torrar o saqueador.
A esposa
corre escada acima até seus aposentos e coloca a irmãs nas muradas.
Ela grita
para as irmãs, "Vocês estão vendo a chegada dos nossos irmãos?" E as
irmãs
lhe dizem que ainda não vêem nada. Quando o Barba-azul
ruge para que a esposa
desça até o subterrâneo para que ele
possa decapitá-la, mais uma vez ela grita, "Vocês
estão vendo a
chegada dos nossos irmãos?" E as irmãs lhe respondem que parecem
estar vendo
um pequeno redemoinho muito ao longe.
Nessa cena temos o desenrolar
completo do surto de força intrapsíquica da
mulher. Suas
irmãs — as mais experientes — assumem o papel principal nesse último
estágio da
iniciação. Elas se tornam os olhos da irmã mais nova. O grito da mulher
transpõe
uma longa distância intrapsíquica para chegar onde moram seus irmãos,
onde moram
aqueles aspectos da psique que foram treinados para a luta, para lutar
até a morte
se necessário. A princípio, porém, os aspectos defensores da psique não
estão tão
acessíveis à consciência como deveriam estar. O entusiasmo e a natureza
combativa
de muitas mulheres não se situam tão perto do consciente quanto seria
eficaz.
A mulher
deve ensaiar a convocação ou a invocação da sua natureza
combativa,
do redemoinho, da força do vento. O símbolo do redemoinho de areia
possui uma
força tal de determinação que quando se concentra em vez de se
dispersar
confere enorme energia à mulher. Com essa atitude mais impetuosa, ela
não perde a
consciência nem é enterrada na companhia das outras. Ela resolve, de
uma vez por
todas, o assassinato interno das mulheres, sua perda da libido, a perda
da sua
paixão pela vida. Embora as perguntas-chave propiciem a abertura e a
soltura
exigida para a liberação, sem os olhos das irmãs, sem o
vigor dos irmãos armados de
espadas, ela não tem como vencer
totalmente.
O Barba-azul chama pela mulher e começa a subir a escada
de pedra. A mulher
grita para as irmãs, "E agora, já
estão vendo nossos irmãos?" As irmãs respondem,
"Estamos!
Estamos vendo nossos irmãos: eles estão quase aqui." Os irmãos vêm
galopando
pelo saguão. Investem quarto adentro e forçam o Barba-azul a sair até a
balaustrada.
Ali, com suas espadas, eles o matam e deixam o que resta para os
devoradores
de carniça.
Quando as mulheres conseguem emergir da ingenuidade,
elas trazem consigo
mesmas e para si mesmas algo de
inexplorado. Nesse caso, a mulher agora mais sábia
procura o
auxílio de uma energia masculina interna. Na psicologia junguiana, esse
elemento
foi denominado animus: um elemento em parte mortal,
em parte
instintual, e em parte cultural da psique da mulher que
se apresenta nos contos de
fadas e na simbologia dos sonhos como
seu filho, seu marido, um estranho e/ou
amante — possivelmente ameaçador,
dependendo das circunstâncias psíquicas do
momento.
Essa figura psíquica tem valor especial por ser investida de qualidades
que
a criação tradicionalmente extirpa das mulheres, sendo a
agressividade uma das mais
comuns.
Quando essa natureza do
gênero oposto é saudável, como simbolizada pelos
irmãos no
"Barba-azul", ela ama a mulher na qual reside. Ela é a energia
intrapsíquica
que ajuda a mulher a realizar qualquer coisa que peça. É ele quem é
capaz de violência, enquanto ela
pode ter outros talentos. Ele irá ajudá-la na sua
busca de consciência. Para muitas
mulheres, ele é a ponte entre os mundos internos
do pensamento e do sentimento e o
mundo exterior.
Quanto mais forte e amplo o animus (pense no animus como uma ponte), com
maior estilo, capacidade e
desenvoltura a mulher manifestará suas idéias e seu
trabalho criativo no mundo exterior
de modo concreto. Uma mulher com um animus
pobremente desenvolvido tem muitas
idéias e pensamentos mas é incapaz de
manifestá-los
para o mundo lá fora. Ela sempre pára a um passo da organização ou
da implementação das suas imagens maravilhosas.
Os irmãos representam a bênção da força e da ação. Com sua
ajuda, no final,
duas coisas acontecem. A primeira
consiste na neutralização na psique da mulher da
enorme
capacidade paralisante do predador. A segunda é a substituição da
virgem de
olhos vidrados por uma de olhos
vigilantes, com um guerreiro de cada lado se ela
precisar
convocá-los.
Os
devoradores de pecados
O Barba-azul é
sob todos os aspectos uma história de "cortes", de separar para
reunir. No último estágio da
história, o corpo do Barba-azul é deixado para que os
devoradores de carne — os
corvos-marinhos, as aves de rapina e os abutres — o levem
embora. Temos, assim, um final
estranho e místico. Nos tempos antigos, havia almas
chamadas de devoradoras de pecados.
Eram espíritos, pássaros ou animais, às vezes
seres humanos, que, num estilo algo
semelhante ao do bode expiatório, assumiam os
pecados, os dejetos, da comunidade
para que as pessoas pudessem ser redimidas ou
purificadas.
Já vimos como a Mulher Selvagem é La Loba, a mulher dos ossos, a
descobridora dos mortos, a que
canta sobre os ossos dos mortos, trazendo-os de volta
à vida; e que essa natureza de
vida-morte-vida é um atributo crucial da índole
instintiva e selvagem das mulheres.
Do mesmo modo, na mitologia nórdica, os
devoradores de pecados eram os
carniceiros que se alimentavam dos mortos,
incubavam-nos no ventre e os
levavam para Hel, que não é um lugar, mas uma
pessoa. Hel é a deusa da vida e da
morte. Ela ensina aos mortos como viver da frente
para trás. Eles vão se tornando
mais jovens, mais jovens até que estão prontos para
renascer e para voltar à vida.
Esse ato de devorar pecados e
pecadores, sua subseqüente incubação e sua
liberação de volta à vida
constituem um processo de individuação para os seres mais
abjetos da psique. Nesse sentido, é
correio e válido que para essa finalidade retiremos
energia dos elementos predatórios
da nossa psique, matando-os por assim dizer,
esgotando sua força. Eles então
podem ser devolvidos à compassiva mãe da vidamorte-
vida, para serem transformados e
recriados num estado menos beligerante.
Muitos estudiosos que examinaram
esse conto consideram que o Barba-azul
representa uma força que não pode
ser redimida.5 Na minha opinião, porém, existe
mais um campo para esse aspecto da
psique — não a transformação de um carnífice
num Mr. Chips, porém algo mais
parecido com uma pessoa que precisa ser mantida
num hospício, um lugar razoável com
árvores, céu e alimentação adequada, e talvez
música para acalmar, e não alguém a
ser banido para um canto nos fundos da psique,
para ser torturado e insultado.
Por outro lado, não quero dar a
entender que não exista algo que seja um mal
manifesto e irregenerável, pois
isso também existe. No transcorrer dos tempos há a
sensação mística de que todo
esforço de individualização realizado por seres
humanos também afeta as trevas no inconsciente coletivo
de todos os humanos,
sendo esse o lugar de residência do predador. Jung disse
uma vez que Deus adquiria
maior consciência6 à medida que os seres humanos adquiriam mais
consciência. Ele
postulava que os humanos lançavam luz sobre o lado
sombrio de Deus quando
expulsavam seus próprios demônios para a luz do dia.
Não afirmo saber como tudo isso funciona, mas de acordo
com o padrão
arquetípico, aparentemente funcionaria da seguinte forma:
em vez de insultar o
predador da psique, ou em vez de fugir dele, nós o
desarmamos. Conseguimos esse
feito não nos permitindo pensamentos discordantes a
respeito da vida da nossa alma
e especialmente do nosso valor. Capturamos os pensamentos
nocivos antes que eles
cresçam o suficiente para nos prejudicar e os destruímos.
Desarmamos o predador ao enfrentar suas invectivas com a
proteção das
nossas próprias verdades. Predador: “Você nunca termina
nada que começa.” Você:
“Termino muitas coisas, sim.” Enfraquecemos os ataques do
predador natural
levando a sério o que for verdade no que ele disser,
trabalhando com essas verdades e
ignorando o resto.
Desarmamos o predador ao manter nossas intuições e
instintos e resistindo à
sua sedução. Se fôssemos fazer uma lista de todas as
nossas perdas até o momento
atual nas nossas vidas, lembrando-nos de ocasiões em que
nos decepcionamos, em
que estivemos indefesas diante do suplício, em que
tivemos uma fantasia cheia de
glacê e frufru, compreenderíamos que esses são pontos
vulneráveis na nossa psique.
É a esses aspectos carentes e desprestigiados que o
predador recorre a fim de
esconder o fato de que sua única intenção é a de
arrastá-la para o subterrâneo e sugar
sua energia como numa transfusão de sangue.
No final da história do Barba-azul, seus ossos e
cartilagens são deixados para
os abutres. Esse fato nos dá um forte insight sobre a transformação do predador.
Essa é a última tarefa para a mulher nessa viagem com o
Barba-azul: a de permitir
que sua natureza de vida-morte-vida desmanche o predador e
o leve embora para ser
incubado, transformado e devolvido à vida.
Quando nos recusamos a obsequiar o predador, sua força se
esvai e ele é
incapaz de agir sem nós. Basicamente, nós o expulsamos
para aquela camada da
psique na qual toda a criação ainda está em formação e o
deixamos borbulhar
naquele caldo etéreo até que possamos encontrar uma
forma, uma forma melhor para
ele preencher. Quando o energum
psíquico do
predador estiver derretido, ele pode
receber uma nova forma com algum outro objetivo. Somos,
portanto, criadores. A
substância bruta, tendo sido reduzida, transforma-se no
material para nossa própria
criação.
As mulheres descobrem que ao dominar o predador, dele
retirando o que é útil
e deixando o resto, elas se sentem cheias de energia,
vitalidade e ímpeto. Elas
extraíram do predador o que lhes havia sido roubado, o
vigor e o sentido verdadeiro.
Pode-se entender de algum dos seguintes modos o ato de
extrair a energia do
predador e de transformá-la em outra coisa. A raiva do
predador pode ser
transformada numa exaltação da alma íntima voltada para a
realização de uma
importante tarefa no mundo. A astúcia do predador pode
ser usada para investigar e
compreender as coisas de forma distanciada. A natureza
assassina do predador pode
ser usada para erradicar o que deve realmente morrer na
vida de uma mulher, ou as
coisas para as quais ela precisa morrer na sua vida
exterior, sendo essas coisas
diferentes conforme a ocasião.
Aproveitar as partes do Barba-azul é como isolar os
elementos de valor
medicinal do venenoso meimendro ou os elementos curativos
da temível beladona, e
usar esses materiais com cuidado para ajudar e para
curar. As cinzas deixadas pelo
predador irão sem dúvida se levantar
novamente, mas de forma diferente, com muito
maior
oportunidade de ser reconhecida e com um poder muito reduzido para
enganar e destruir — pois você derreteu muitos dos poderes
que ele dedicava à
destruição e voltou esses
poderes para o que é útil e relevante.
O Barba-azul é
uma fábula muito importante para as mulheres jovens, não
necessariamente na idade cronológica, mas em alguma parte
da sua mente. É uma
história sobre a ingenuidade
psíquica, mas também sobre o vigoroso desrespeito à
proibição
de “olhar” e de afinal trucidar e reduzir a pedaços o predador natural
da
psique.
As histórias têm a
intenção de devolver o movimento à vida interior. A lenda
do Barba-azul é um exemplo de especial importância para ser
aplicado à vida interior
de uma mulher que tenha
sido assustada, acuada ou encurralada. As soluções
presentes
nas histórias diminuem o medo, ministram doses de adrenalina na hora
certa e, o que é mais importante para o self ingênuo no
cativeiro, abrem portas em
paredes anteriormente
sem nenhuma abertura.
Talvez o mais importante seja o
fato de a história do Barba-azul trazer ao nível
do
consciente a chave psíquica, a capacidade de fazer qualquer pergunta a
respeito de
nós mesmos, da nossa família, dos nossos
projetos e da vida como um todo. Depois,
como um
ser selvagem que tudo fareja, que cheira em volta, debaixo e dentro para
descobrir o que uma coisa é, a mulher está livre para
encontrar respostas verdadeiras
para suas perguntas
mais profundas e mais sombrias. Ela está livre para arrancar os
poderes daquilo que a assolou e para voltar esses poderes,
que antes foram
empregados contra ela, para os
excelentes usos que lhe forem mais convenientes.
Assim
é a mulher selvagem.
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