quinta-feira, 1 de julho de 2010

Porque o Barba Azul é um grande conto da tradição

Conheci o conto O Barba Azul, reproduzido no post anterior, em um curso sobre autoconhecimento em que estudei há um tempo atrás.

Eu  fiquei tentado a adapta-lo para contar na apresentação final do curso Narrativas & Narradores.
Entretanto, depois de ler o texto abaixo, um exerto do livro Mulheres que correm com os lobos, tive mesmo de mudar de idéia.

Em primeiro lugar, o conto precisaria ser condensado em uma página, por questões de tempo. 
Tarefa impossível! Como podemos ver no texto, cada passagem, cada elemento da história tem sua função, seu simbolismo e sua chave iniciática e psicológica - não podendo ser subtraído sob pena de se perder a força transformadora do conto.
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[Sobre o conto O Barba azul
excerto de Mulheres que correm com os lobos.]
O predador natural da psique
O desenvolvimento de uma relação com a natureza selvagem é uma parte
essencial da individuação da mulher. Para que isso possa se realizar, a mulher precisa
penetrar nas trevas, mas ao mesmo tempo não pode cair irreparavelmente numa
armadilha, ser capturada ou morta seja no caminho de ida seja no de volta.
A história do Barba-azul fala desse carcereiro, o homem sinistro que habita a
psique de todas as mulheres, o predador inato. Ele é uma força específica e
indiscutível que precisa ser contida e mantida na memória. Para conter o predador
natural3 da psique, é necessário que as mulheres permaneçam de posse de todos os
seus poderes instintivos. Alguns deles são o insight, a intuição, a resistência, a
tenacidade no amor, a percepção aguçada, o alcance da sua visão, a audição apurada,
os cantos sobre os mortos, a cura intuitiva e o cuidado com seu próprio fogo criativo.
Na interpretação psicológica, recorremos a todos os aspectos do conto de fadas
para nos ajudar a representar o drama interno à psique de uma única mulher. O
Barba-azul simboliza um complexo profundamente recluso que fica espreitando às
margens da vida da mulher, observando, à espera de uma oportunidade para atacar.
Embora ele possa se apresentar simbolicamente de modo semelhante ou diferente
nas psiques masculinas, ele é um inimigo ancestral e contemporâneo dos dois sexos.
É difícil compreender totalmente a força do Barba-azul por ser ela inata, ou
seja, inerente a todos os seres humanos desde o instante do nascimento e, nesse
sentido, não ter origem consciente. No entanto, creio que temos uma pista de como
sua natureza se desenvolveu no pré-consciente dos seres humanos, pois na história o
Barba-azul é chamado de "mágico fracassado". Por essa ocupação, ele se relaciona
com outros contos de fadas que também retraíam o predador maligno da psique
como um mago de aparência bastante normativa, mas imensamente destrutiva.
Usando-se essa descrição como um fragmento de arquétipo, podemos
compará-la com o que sabemos de feitiçaria fracassada ou de força espiritual
fracassada na história dos mitos. O grego Ícaro voou perto demais do sol e suas asas
de cera derreteram, lançando-o de volta à terra. O mito do povo zuni "O menino e a
águia" fala de um menino que teria passado a pertencer ao reino das águias, não fosse
por ele imaginar que poderia desrespeitar as leis da Morte. Enquanto ganhava
altitude pêlos céus, seu manto de águia emprestado foi arrancado e ele caiu
cumprindo seu triste destino. Na mitologia cristã, Lúcifer reivindicou igualdade com
Jeová e foi expulso para o inferno. No folclore há uma série de aprendizes de
feiticeiros que ousaram ingenuamente se aventurar além do nível real de seus
conhecimentos ou que tentaram transgredir a Natureza. Foram punidos com
ferimentos ou cataclismos.
Enquanto examinamos esses leitmotive, vemos que os predadores neles
retratados desejam a superioridade e o poder sobre os outros. Eles sofrem de uma
espécie de inflação psicológica pela qual desejam ser mais sublimes do que o Inefável,
tão importantes quanto ele e iguais a ele. Esse Inefável é aquele que por tradição
distribui e controla as forças misteriosas da Natureza, incluindo-se os sistemas da
Vida e da Morte e as leis da natureza humana, e assim por diante.
No mito e nas histórias, descobrimos que a conseqüência para uma entidade
que tente desrespeitar, dobrar ou alterar o modo de operação do Inefável é o castigo,
seja por ter de suportar uma redução da sua capacidade no universo dó mistério e da
mágica — como, por exemplo, aprendizes que não têm mais permissão de praticar —
ou um exílio solitário longe da terra dos deuses, ou alguma perda semelhante de
graça e poder através de dificuldades da fala, de mutilações ou da morte.
Se formos capazes de entender o Barba-azul como o representante interior de
todo o mito do proscrito, poderemos também compreender a solidão profunda e
inexplicável que às vezes se abate sobre ele (nós) em virtude do fato de ele vivenciar
um exílio permanente da salvação.
O problema com o Barba-azul no conto de fadas é que, em vez de alimentar a
luz das jovens forças femininas da psique, ele prefere encher-se de ódio e deseja
extinguir as luzes da psique. Não é difícil imaginar que, numa conformação tão
maligna, esteja enredado alguém que um dia desejou ultrapassar a luz e caiu em
desgraça por essa razão. Podemos entender por que motivos, a partir de então, o
desterrado passou a manter uma perseguição cruel em busca da luz dos outros.
Podemos imaginar que sua esperança seja a de que ele, se conseguisse reunir uma
quantidade suficiente de almas, poderia acender uma chama de luz que afinal
erradicaria as trevas e corrigiria sua solidão.
Nesse sentido, no início do conto temos um ser terrível no que diz respeito ao
seu aspecto não redimido. No entanto, esse fato é uma das verdades cruciais que a
irmã mais nova deve reconhecer, que todas as mulheres devem reconhecer: a de que
tanto interna quanto externamente existe uma força que atuará opondo-se aos
instintos do Self natural e de que essa força maligna é o que é. Embora talvez
pudéssemos sentir compaixão por ela, nossos primeiros atos devem ser o do
reconhecimento da sua existência, o de nos protegermos da sua devastação e, afinal, o
de privá-la de sua energia assassina.
Todas as criaturas precisam aprender que existem predadores. Sem esse
conhecimento, a mulher será incapaz de se movimentar com segurança dentro de sua
própria floresta sem ser devorada. Compreender o predador significa tornar-se um
animal maduro pouco vulnerável à ingenuidade, inexperiência ou insensatez.
Como um rastreador sagaz, o Barba-azul percebe que a filha mais nova está
interessada nele, ou seja, que se dispõe a ser sua presa. Ele a pede em casamento e,
num momento de exuberância juvenil, que é muitas vezes uma mistura de loucura,
prazer, felicidade e interesse sexual, ela diz sim. Que mulher não reconhece esse
enredo?
A mulher ingênua como presa
A irmã mais nova, a menos desenvolvida, cumpre o roteiro tipicamente
humano da mulher ingênua. Ela será capturada temporariamente pelos seu próprio
inimigo interior. Mesmo assim, no final escapará mais sábia, mais forte, e sabendo
reconhecer à primeira vista o astucioso predador da sua própria psique.
A história psicológica subjacente ao conto também se aplica à mulher mais
velha que ainda não aprendeu perfeitamente a reconhecer o predador inato. Talvez
ela tenha dado início ao processo repetidas vezes mas, por lhe faltarem orientação e
apoio, ela ainda não o concluiu.
E por isso que as narrativas míticas são tão construtivas: elas fornecem mapas
iniciáticos de tal modo que mesmo uma tarefa que esteja emperrada possa ser
terminada. O conto do Barba-azul é útil para todas as mulheres, independente de
serem jovens e terem acabado de saber da existência do predador ou de terem sido
acossadas e acuadas por ele décadas a fio, encontrando-se, afinal, preparadas para
um confronto final e decisivo com ele.
A irmã mais nova representa um potencial criativo dentro da psique. Algum
aspecto que está se aproximando de uma vida exuberante e reprodutiva. Ocorre,
porém, um desvio quando ela concorda em se tornar presa de um homem perverso
em virtude de não estarem intatos seus instintos para perceber e tomar outra decisão.
Do ponto de vista psicológico, as meninas e os meninos são como que
dormentes para o fato de que eles próprios possam ser as presas. Embora às vezes
nos pareça que a vida seria muito mais fácil e menos dolorida se todos os seres
humanos nascessem totalmente em estado de alerta, isso não acontece. Nós todos
nascemos anlagen, como o potencial no núcleo de uma célula: em biologia, a Anlage
é a parte da célula caracterizada como “aquilo que se tornará”. Dentro da Anlage está
a substância fundamental que, com o tempo, irá se desenvolver fazendo com que nos
tornemos uma pessoa inteira.
Portanto, nossas vidas, enquanto mulheres, consistem em acelerar a Anlage. O
conto do Barba-azul fala do despertar e da educação desse núcleo psíquico, dessa
célula luminosa. Em prol dessa educação, a irmã mais nova concorda em se casar
com uma força que ela acredita ser muito distinta. O casamento nos contos de fadas
simboliza a procura de um novo status, o desdobramento de uma nova camada da
psique.
No entanto, a jovem esposa se iludiu. A princípio, ela sentia medo do Barbaazul.
Estava desconfiada. Um pouco de diversão no bosque faz com que ela descarte
essa intuição. Quase todas as mulheres já passaram por essa experiência pelo menos
uma vez. Conseqüentemente, ela se convence de que o Barba-azul não é perigoso,
mas só excêntrico e cheio de idiossincrasias. Como sou boba! Por que me repugna
tanto aquela barbinha azul? Sua natureza selvagem, porém, já farejou a situação e
sabe que o homem de barba azul é mortal, enquanto a psique ingênua descarta essa
sabedoria interior.
Esse erro de raciocínio é quase rotineiro numa mulher tão jovem cujos
sistemas de alarme ainda não estão totalmente desenvolvidos. Ela é como um filhote
de lobo, sem mãe, que rola e brinca na clareira, sem perceber o lince de quase 50
quilos que se aproxima vindo das sombras. No caso de uma mulher mais velha que
está tão isolada do aspecto selvagem que mal chega a ouvir os avisos do seu íntimo,
ela também segue em frente, com um sorriso ingênuo.
Bem que poderíamos nos perguntar se haveria como evitar tudo isso. Como no
mundo animal, a menina aprende a ver o predador através dos ensinamentos da mãe
e do pai. Sem a amorosa orientação dos pais, ela certamente será uma presa
prematura na vida. Em retrospectiva, quase todas nós, pelo menos uma vez na vida,
passamos pela experiência de uma idéia irresistível ou de uma pessoa meio
deslumbrante entrando pela nossa janela no meio da noite para nos apanhar de
surpresa. Mesmo que estejam usando máscaras de esquiar, que tragam uma faca
entre os dentes e um saco de dinheiro jogado sobre os ombros, nós ainda assim
acreditamos quando eles nos dizem que trabalham no ramo bancário.
Contudo, mesmo com uma criação criteriosa por parte dos pais, a jovem pode,
especialmente a partir dos doze anos de idade, ser seduzida de modo a se afastar das
suas verdades por grupos de colegas, forças culturais ou pressões psíquicas,
começando assim a assumir riscos com bastante imprudência no esforço de descobrir
as coisas por si mesma. Ao trabalhar com adolescentes mais velhos que vivem
convencidas de que o mundo é bom se ao menos elas conseguirem lidar com ele
corretamente, sempre me sinto como um velho cão grisalho. Tenho vontade de pôr as
patas diante dos olhos e gemer, porque vejo o que elas não vêem e sei, especialmente
se elas forem determinadas e exuberantes, que elas vão insistir em se envolver com o
predador pelo menos uma vez antes que sejam despertadas com um choque.
No início das nossas vidas, nosso ponto de vista feminino é muito ingênuo, o
que quer dizer que nossa compreensão emocional do que está oculto é muito tênue.
No entanto, é assim que todas nós começamos. Somos ingênuas e nos convencemos a
entrar em situações muito confusas. Não ser iniciada nos detalhes dessas questões
significa estar num estágio da nossa vida em que somos propensas a perceber apenas
o que está às claras.
Entre os lobos, quando a mãe deixa os filhotes para ir caçar, os pequenos
tentam acompanhá-la para fora da toca, pela trilha abaixo. A mãe rosna para eles,
investe contra eles e apavora os filhotes até que eles voltem atabalhoadamente para
dentro da toca. A mãe sabe que os filhotes ainda não têm condição de pesar e avaliar
outras criaturas. Eles não sabem quem é um predador e quem não é. Com o tempo,
ela irá ensiná-los, com rigidez e eficácia.
À semelhança dos filhotes de lobo, as mulheres precisam de uma iniciação
semelhante, que lhes revele que o mundo interior assim como o exterior não são
sempre locais propícios. Muitas mulheres não chegam a receber os ensinamentos
básicos a respeito de predadores que a mãe loba dá aos filhotes como, por exemplo,
se for ameaçador e maior do que você, fuja; se for mais fraco, pense no que quer
fazer; se estiver doente, deixe-o em paz; se tiver espinhos, veneno, presas ou garras
aguçadas, recue e vá na direção oposta; se tiver um cheiro bom mas estiver cercado
de garras de ferro, passe direto.
A irmã mais nova na história não é só ingênua quanto aos seus próprios
processos mentais e totalmente ignorante quanto ao aspecto assassino da sua própria
psique, mas é também capaz de ser seduzida pelos prazeres do ego. E por que não?
Todas nós queremos tudo maravilhoso. Toda mulher quer montar um cavalo
enfeitado com sinos e sair cavalgando pelos campos sem fim e pela floresta sensual.
Todos os seres humanos querem atingir um paraíso prematuro aqui na terra. O
problema é que o ego deseja sentir-se fantástico, enquanto um anseio pelo
paradisíaco, quando aliado à ingenuidade, não nos deixa realizadas, mas nos
transforma, sim, em alvo para o predador.
Essa aceitação do casamento com o monstro é na realidade decidida quando as
meninas são muito novas, geralmente antes dos cinco anos de idade. Elas são
ensinadas a não enxergar e, em vez disso, a "dourar" todo tipo de esquisitice, quer
seja agradável quer não. É em conseqüência desse treinamento que a irmã mais nova
consegue dizer, "Bem, até que a barba dele não é tão azul assim". Esse treinamento
básico para que as mulheres "sejam boazinhas" faz com que elas ignorem sua
intuição. Nesse sentido, elas de fato recebem lições específicas para que se submetam
ao predador. Imaginem uma loba ensinando seus filhotes a "serem bonzinhos" diante
de uma doninha enfurecida ou de uma astuciosa cascavel.
No conto, até mesmo a mãe é cúmplice. Ela vai ao piquenique, "acompanha" as
filhas no passeio. Ela não diz uma palavra que recomende cautela a qualquer uma das
filhas. Seria possível afirmar que a mãe biológica ou a mãe interior está adormecida
ou é ela própria ingênua, como ocorre muitas vezes com meninas muito novas ou
com mulheres que não foram criadas pela mãe.
É interessante observar que, no conto, as irmãs mais velhas demonstram certa
conscientização quando dizem que não gostam do Barba-azul, muito embora ele
tenha acabado de lhes proporcionar diversão e atenções num estilo muito romântico
e paradisíaco. A história dá a impressão de que alguns aspectos da psique,
representados pelas irmãs mais velhas, são um pouco mais desenvolvidos em termos
de insight, elas têm algum "conhecimento" que as avisa para não romantizar o
predador. A mulher iniciada presta atenção às irmãs mais velhas na psique; elas a
protegem do perigo com seus avisos. A mulher não-iniciada não lhes dá atenção; ela
ainda está excessivamente identificada com a ingenuidade.
Digamos, por exemplo, que uma mulher ingênua insista em escolher mal seus
parceiros. Em algum ponto da sua mente ela sabe que esse modelo de
comportamento é infrutífero, que deveria parar e seguir valores diferentes. Muitas
vezes ela até sabe como deve prosseguir. No entanto, há algo de irresistível, uma
espécie de Barba-azul hipnótico, que faz com que continue seguindo o padrão
destrutivo. Na maioria dos casos, a mulher sente que, se apenas se mantiver fiel ao
velho modelo um pouco mais, ora, sem dúvida a sensação paradisíaca que procura
aparecerá no próximo batimento do seu coração.
Num outro extremo, uma mulher envolvida numa dependência química tem
com o máximo de nitidez, no fundo da mente, um conjunto de irmãs mais velhas que
lhe dizem, “Não! De jeito nenhum! Isso é ruim para a cabeça e ruim para o corpo. Nós
nos recusamos a continuar.” No entanto, o desejo de encontrar o paraíso atrai a
mulher para o casamento com o Barba-azul, o traficante das viagens psíquicas.
Qualquer que seja o dilema em que se encontre a mulher, as vozes das irmãs
mais velhas na sua psique continuam a lhe recomendar consciência e sensatez nas
suas escolhas. Elas representam aquelas vozes do fundo da mente que sussurram as
verdades que uma mulher pode desejar evitar uma vez que elas acabem com sua
fantasia do Paraíso Encontrado.
E assim ocorre o casamento fatal, a fusão da doce ingenuidade com a escuridão
covarde. Quando o Barba-azul sai em viagem, a jovem não percebe que, embora ele a
exorte a fazer tudo o que desejar — com exceção daquela única proibição —, ela está
vivendo menos, não mais. Muitas mulheres viveram literalmente o conto do Barbaazul.
Elas se casam enquanto ainda são ingênuas a respeito de predadores, e
escolhem um parceiro que é destrutivo para com a sua vida. Elas se sentem
determinadas a “curar” aquele a quem amam. Estão, sob certo aspecto, “brincando de
casinha”. Poderíamos dizer que elas passaram muito tempo dizendo que a barba dele
afinal não é tão azul assim.
Uma mulher capturada desse modo acaba percebendo que suas esperanças de
uma vida razoável para si mesma e para seus filhos diminuem cada vez mais. É de se
esperar que ela abra a porta do quarto onde jaz toda a destruição da sua vida. Embora
possa ser o parceiro físico da mulher quem a prejudique e arrase sua vida, o predador
inato dentro da sua própria psique concorda com isso. Enquanto a mulher for forçada
a acreditar que é indefesa e/ou for treinada para não registrar no consciente o que
sabe ser verdade, os impulsos e dons femininos da sua psique continuarão a ser
erradicados.
Quando uma alma jovem se casa com o predador, ela é capturada ou reprimida
durante uma fase da sua vida que deveria ser de desdobramento. Em vez de viver
livremente, ela começa a viver falsamente. A promessa enganosa do predador diz que
a mulher será rainha de algum modo, quando de fato o que se planeja é seu
assassinato. Há uma saída para evitar isso tudo, mas é preciso que se tenha a chave.
A chave do conhecimento: a importância de farejar
Ah, e essa chavinha minúscula? Ela é o acesso ao segredo que todas as
mulheres sabem e ainda assim não sabem. A chave é tanto uma permissão quanto um
apoio para que ela conheça os segredos mais profundos, mais obscuros da psique,
nesse caso aquilo que degrada e destrói estupidamente o potencial de uma mulher.
O Barba-azul prossegue em seu plano destrutivo ao instruir a esposa a se
comprometer psiquicamente. "Faça o que quiser", diz ele. Ele sugere à mulher uma
falsa sensação de liberdade. Ele insinua que ela pode se alimentar à vontade e se
deliciar com paisagens bucólicas, pelo menos dentro dos limites do seu território. Na
realidade, porém, ela não é livre porque não lhe é permitido registrar o conhecimento
sinistro a respeito do predador, muito embora bem no fundo da psique ela já
compreenda bem a questão.
A mulher ingênua concorda em permanecer "na ignorância". Mulheres fáceis
de serem logradas e aquelas com instintos fragilizados ainda se voltam, como as
flores, para o lado em que o sol se apresenta. A mulher ingênua ou magoada pode
então, com extrema facilidade, ser seduzida com promessas de conforto, diversão e
arte, promessas de inúmeros prazeres, de uma ascensão social aos olhos da família,
das colegas, ou de maior segurança, amor eterno ou sexo ardente.
O Barba-azul proíbe a jovem de usar a única chave que a traria de volta à
consciência. Proibir uma mulher de usar a chave que leva à consciência é o mesmo
que lhe arrancar a Mulher Selvagem, seu instinto natural de curiosidade e sua
descoberta do que “se esconde por baixo”. Sem o conhecimento selvagem, a mulher
está desprovida de proteção adequada. Se ela tentar obedecer à ordem do Barba-azul
no sentido de não usar a chave, estará escolhendo a morte para seu espírito. Ao optar
por abrir a porta de acesso ao horripilante quarto secreto, ela escolhe a vida.
No conto, as irmãs vêm fazer uma visita e sentem “como todo mundo, muita
curiosidade”. A esposa fala em tom alegre, “podemos fazer o que quisermos”, com
exceção de uma coisa. As irmãs resolvem fazer um jogo para descobrir em que porta a
chavinha serve. Elas mais uma vez têm o impulso correio no sentido da consciência.
Pensadores no campo da psicologia, como Freud e Bettelheim, interpretaram
episódios semelhantes aos encontrados no conto do Barba-azul como uma punição
psicológica pela curiosidade sexual das mulheres.4 Foi atribuída à curiosidade
feminina uma conotação negativa, enquanto a masculina era chamada de curiosidade
investigativa. As mulheres eram abelhudas, enquanto os homens eram indagadores.
Na realidade, a trivialização da curiosidade das mulheres, que faz com que elas se
assemelhem mais a espias chatas e maçantes, representa uma negação do insight, da
intuição e dos pressentimentos das mulheres. Ela nega todos os seus sentidos. Ela
tenta atacar sua força fundamental.
Portanto, considerando-se que as mulheres que ainda não abriram a porta
proibida costumam ser as mesmas que vão direto para os braços do Barba-azul, não
foi por acaso que as irmãs mais velhas preservaram intacto o instinto selvagem da
curiosidade. Essas são as mulheres-sombras da psique individual feminina, as
contrações e fisgadas nas profundezas da mente de uma mulher que fazem com que
ela se lembre, que lhe restituem a atitude correta para com o que é importante.
Encontrar a mínima porta é importante; desobedecer às ordens do predador é
importante; descobrir o que esse quarto abriga de especial é fundamental.
No passado, as portas eram feitas em sua maioria de pedra, mas também de
madeira. Acreditava-se que o espírito da pedra ou da madeira permanecia na porta, e
ele também era convocado a servir de guardião do aposento. Nos primeiros tempos,
havia mais portas nos túmulos do que nas casas, e a própria imagem da porta
indicava que alguma coisa de valor espiritual jazia ali dentro, ou que ali dentro havia
algo que devia ser mantido preso.
A porta no conto é descrita como uma barreira psíquica, uma espécie de
guarda colocado à frente do segredo. Esse guarda que reside na pedra ou na madeira
nos lembra novamente a reputação do predador como mago — uma força psíquica
que nos envolve e confunde como se por mágica, impedindo que tomemos
conhecimento do que já sabemos. As mulheres reforçam essa barreira ou porta
quando caem num tipo de estímulo negativo que as adverte para não pensar ou
mergulhar fundo demais, pois “você pode ter uma surpresa desagradável”. Para
derrubar esse obstáculo, é preciso que se aplique o antídoto mágico correio. E o que
se aplica encontra-se no símbolo da chave.
Fazer a pergunta certa é o ponto central da transformação — nos contos de
fadas, na psicanálise e na individuação. A pergunta correta provoca a germinação da
consciência. A pergunta bem-formulada sempre emana de uma curiosidade essencial
a respeito do que está por trás. As perguntas são as chaves que fazem com que as
portas secretas da psique se escancarem.
Embora as irmãs não saibam se o que se encontra atrás da porta é um tesouro
ou uma imitação grosseira, elas recorrem aos seus instintos perfeitos para fazer a
pergunta psicológica exata, "Onde você acha que fica essa porta, e o que poderia estar
atrás dela?"
É a essa altura que a natureza ingênua começa a amadurecer, a questionar. "O
que está por trás do visível? O que faz com que aquela sombra cresça na parede?" A
natureza jovem e ingênua começa a compreender que, se existe algo de secreto, se
existe algo de sombrio, se existe algo de proibido, é preciso que ele seja examinado.
Aquelas que quiserem desenvolver a consciência perseguem tudo que fica por trás do
que é facilmente observável: o gorjeio invisível, a janela suja, a porta que range, uma
fresta de luz por baixo da soleira. Elas perseguem esses mistérios até que a substância
da questão lhes sejarevelada.
Como veremos, a capacidade de suportar o que se vê é a visão vital que faz com
que a mulher volte a sua natureza profunda, para ali receber sustentação em todos os
pensamentos, sentimentos e atos.
O noivo animal
Portanto, embora a jovem tente seguir as ordens do predador e concorde em
manter sua ignorância acerca do segredo oculto nos subterrâneos do castelo, ela só
pode agir assim durante um determinado período. Afinal ela apresenta a chave, a
pergunta, à porta e descobre a horrenda carnificina em algum ponto da sua vida
profunda. E essa chave, esse minúsculo símbolo da vida, de repente não pára de
sangrar, não pára de soltar o grito de que há algo de errado. Uma mulher pode tentar
se esconder para não ver as devastações da sua vida, mas o sangramento, a perda da
energia da vida, continuará até que ela reconheça a real natureza do predador e o
domine.
Quando as mulheres abrem as portas das suas próprias vidas e examinam o
massacre nesses cantos remotos, na maior parte das vezes elas descobrem que
estiveram permitindo o assassinato de seus sonhos, objetivos e esperanças mais
cruciais. Encontram sem vida idéias, sentimentos e desejos; aquilo que um dia foi
gracioso e promissor está agora esgotado até sua última gota de sangue. Se esses
sonhos e esperanças estiverem vinculados ao desejo de um relacionamento, de uma
realização, de obter sucesso, ou de uma obra de arte, quando ocorre essa apavorante
descoberta na psique, podemos ter certeza de que o predador natural, também
freqüentemente simbolizado nos sonhos como o noivo animal, esteve trabalhando
metodicamente na destruição dos desejos mais caros à mulher.
A personagem do noivo animal é um marco na psique, representando algo
perverso disfarçado como algo benévolo. Essa caracterização ou algo dela
aproximado está sempre presente quando uma mulher nutre pressentimentos
ingênuos acerca de alguma coisa ou de alguém. Quando uma mulher tenta ignorar os
fatos das suas próprias devastações, seus sonhos noturnos gritarão avisos para ela,
avisos e exortações para acordar! Pedir ajuda! Fugir! Ou dar o golpe final! Com o
passar dos anos, soube de muitos sonhos de mulheres com essa característica do
noivo animal ou essa aura de as-coisas-não-são-tão-boas-quanto-parecem. Uma
mulher sonhou com um homem belo e encantador, mas, quando baixou os olhos, viu
que começava a se desenrolar da sua manga uma ameaçadora espiral de arame
farpado. Outra mulher sonhou que estava ajudando um velho a atravessar a rua, e o
velho de repente sorriu diabolicamente para ela e "derreteu-se" no seu braço,
causando uma queimadura profunda. Ainda uma outra sonhou que estava fazendo
uma refeição com um amigo desconhecido cujo garfo atravessou a mesa voando para
feri-la mortalmente.
Essa incapacidade de ver, de compreender, de perceber que nossos desejos
interiores não são concomitantes com nossos atos exteriores — é esse o rastro
deixado pelo noivo animal. A presença desse fator na psique esclarece o motivo pelo
qual as mulheres que dizem desejar um relacionamento fazem tudo que podem para
sabotar um relacionamento afetuoso. É assim que mulheres que fixam metas para
estar aqui, ali ou no lugar que seja até uma certa data nem mesmo dão o primeiro
passo naquela direção, ou abandonam a jornada ante a primeira dificuldade. É assim
que todos os adiamentos dão origem ao ódio a si mesma; todos os sentimentos de
vergonha são reprimidos e colocados de lado para se exacerbarem; todos os
recomeços tão necessários e todos os finais já há muito atrasados não se realizam.
Onde quer que o predador se esgueire e atue, tudo é descarrilado, demolido e
decapitado.
O noivo animal é um símbolo amplamente disseminado nos contos de fadas,
sendo que o enredo obedece ao seguinte padrão: um desconhecido corteja uma jovem
que concorda em casar com ele, mas antes do dia da cerimônia ela vai dar um passeio
no bosque, perde-se e, quando escurece, sobe numa árvore para se proteger de
predadores. Enquanto espera que a noite transcorra, chega por ali seu prometido com
uma pá no ombro. Algo em seu futuro marido deixa transparecer que ele não é
realmente um ser humano. Às vezes, pode ser uma deformação no pé, na mão, no
braço ou algo em seu cabelo que é decididamente estranho e que o denuncia.
Ele começa a cavar uma cova embaixo da mesma árvore em que ela se
encontra, cantarolando e resmungando o tempo todo sobre como vai matar sua
última noiva e enterrá-la nessa cova. A moça apavorada fica escondida a noite inteira
e, pela manhã, quando o noivo se foi, ela corre para casa, conta a história para o pai e
os irmãos, e os homens armam uma emboscada para o noivo animal e o matam.
Esse é um poderoso processo arquetípico na psique das mulheres. A mulher
tem uma percepção adequada e, embora ela também a princípio concorde em
desposar o predador natural da psique, embora ela também passe um período perdida
na psique, ela no final consegue sair pois é capaz de penetrar na verdade total, é
capaz de manter-se consciente da existência dele e de tomar uma atitude para
resolver o caso.
Ah, é então que chega a etapa seguinte, ainda mais difícil: a de ser capaz de
suportar o que se vê, toda a autodestruição e entorpecimento.
Cheiro de sangue
No conto, as irmãs fecham com violência a porta da câmara da morte. A jovem
esposa tem os olhos fixos no sangue na chave. Um gemido sobe de dentro dela.
“Preciso limpar esse sangue, ou ele saberá!”
Agora o self ingênuo tem conhecimento de uma força assassina solta dentro da
psique. E o sangue na chave é sangue de mulher. Se fosse apenas sangue do sacrifício
de fantasias frívolas, haveria na chave apenas uma pequena marca. Trata-se, porém,
de algo muito mais sério pois o sangue representa o extermínio dos aspectos mais
profundos e íntimos da vida criativa e da alma.
Nesse estado, a mulher está perdendo sua energia para criar, quer sejam
soluções para amenizar questões da sua vida como a educação, a família, as amizades,
quer se trate dos seus objetivos, seu desenvolvimento pessoal, sua arte. Isso não é um
mero adiamento, pois prossegue por semanas e meses a fio. A mulher parece
arrasada, talvez cheia de idéias, mas com uma anemia profunda e cada vez mais
incapaz de realizá-las.
O sangue nesse conto não é o sangue menstrual, mas sangue arterial, da alma.
Ele não mancha só a chave; ele escorre pela persona inteira. O vestido que está
usando bem como todos os outros no guarda-roupa ficam manchados. Na psicologia
arquetípica, a roupa simboliza a presença externa. Ela é a máscara que a pessoa
mostra ao mundo. Ela esconde muita coisa. Com disfarces e enchimentos psíquicos
adequados, tanto os homens quanto as mulheres podem apresentar ao mundo uma
persona quase perfeita, uma fachada quase perfeita.
Quando a chave que chora — ou a pergunta que clama — mancha nossas
personae, não conseguimos mais esconder nossas dificuldades. Podemos dizer o que
quisermos, mostrar a expressão mais sorridente, mas, uma vez tendo visto a verdade
revoltante da câmara da morte, não podemos mais fingir que ela não existe. E ver a
verdade faz com que esgotemos nossa energia ainda mais. É doloroso; é um corte na
artéria. Precisamos tentar corrigir imediatamente esse terrível estado.
Portanto, nesse conto de fadas, a chave também funciona como recipiente. Ela
contém o sangue, que é a recordação do que se viu e do que se sabe. Para as
mulheres, a chave sempre simboliza o acesso a um mistério ou ao conhecimento. Nos
contos de fadas, a chave é muitas vezes representada por palavras como, por
exemplo, “Abre-te, Sésamo”, que Ali Babá grita para uma montanha anfractuosa,
fazendo com que a mesma ribombe e se abra para ele poder entrar. Num estilo mais
picaresco, nos estúdios de Disney, a fada-madrinha de Cinderela entoa “Bibbitybobbity-
boo!”, e abóboras viram carruagens e camundongos, cocheiros.
Nos mistérios de Elêusis, a chave era escondida sobre a língua, dando a
entender que o enigma, a pista, o indício estavam num conjunto especial de palavras,
de perguntas-chave. E as palavras de que as mulheres mais precisam em situações
semelhantes às descritas na história do Barba-azul são as seguintes: O que está atrás
da porta? O que não é como aparenta ser? O que eu sei no fundo de mim mesma que
preferia não saber? Que parte de mim foi morta ou está agonizando?
Todas essas perguntas são chaves. E é muito provável que as respostas a essas
quatro questões apareçam manchadas de sangue. O aspecto assassino da psique, cuja
tarefa consiste parcialmente em impedir que ocorra a conscientização, continuará a
fazer verificações ocasionais e a arrancar ou envenenar qualquer novo rebento. É a
sua natureza. É a sua função.
Por isso, num sentido positivo, é somente a insistência do sangue na chave que
faz com que a psique grave o que viu. É que existe uma censura natural em todos os
acontecimentos negativos e dolorosos que ocorrem em nossas vidas. O ego censor
sem sombra de dúvida deseja esquecer que viu o quarto, que viu os cadáveres. É por
isso que a esposa do Barba-azul tenta esfregar a chave com o esfregão de crina. Ela
tenta tudo o que conhece, todos os remédios para lacerações e ferimentos profundos
da medicina popular das mulheres: teia de aranha, cinzas de fogo — todos associados
à urdidura da vida e da morte pelas Parcas. No entanto, ela não consegue cauterizar a
chave; nem consegue encerrar o processo fingindo que ele não ocorre. Ela não
consegue fazer a chavinha parar de chorar sangue. Paradoxalmente, à medida que
sua vida antiga está morrendo e até mesmo os melhores remédios não conseguem
esconder esse fato, ela está alerta para sua perda de sangue e, portanto, apenas
começando a viver.
A mulher previamente ingênua precisa encarar o que ocorreu. O assassinato
cometido pelo Barba-azul de todas as suas esposas "curiosas" é o assassinato da
criatividade feminina, aquela que tem o potencial para desenvolver todos os tipos de
aspectos novos e interessantes. O predador é especialmente agressivo ao armar
emboscadas para a natureza selvagem da mulher. No mínimo, ele procura escarnecer
da ligação da mulher com seus insights, suas inspirações, sua persistência e tudo o
mais: e, no máximo, ele tenta romper essa ligação.
Uma outra mulher com quem trabalhei, pessoa talentosa e inteligente, contoume
a história da sua avó que morava no Meio-Oeste. A imagem de felicidade dessa
avó consistia em tomar o trem até Chicago usando um belo chapéu e sair caminhando
pela Michigan Avenue, olhando todas as vitrinas e sentindo-se elegante. Por um
motivo ou outro, ou talvez pelo destino, ela se casou com um homem do campo. Eles
foram morar no meio da região tritícola, e a mulher começou a definhar na elegante
casa de fazenda que era pequena, exatamente do tamanho certo, com todos os filhos
certos e o marido certo. Ela já não tinha mais tempo para a vida "frívola" que havia
levado no passado. "Filhos demais." "Serviços domésticos demais."
Um dia, anos mais tarde, depois de lavar o piso da cozinha e da sala de estar
com as próprias mãos, ela vestiu sua melhor blusa de seda, abotoou sua saia longa e
colocou seu chapelão na cabeça. Empurrou o cano da espingarda do marido contra o
céu da boca e puxou o gatilho. Qualquer mulher viva sabe por que ela lavou o chão
antes.
Uma alma faminta pode ficar tão cheia de dor que a pessoa não consegue
suportar mais. Como as mulheres têm uma necessidade profunda da alma se
expressar em seus próprios estilos de alma, elas precisam se desenvolver e florescer
de um modo que faça sentido para elas, sem serem molestadas pêlos outros. Nesse
sentido, a chave com o sangue poderia também representar as linhagens femininas
que vieram antes de cada mulher. Quem dentre nós não conhece pelo menos uma
mulher amada que perdeu seus instintos para fazer boas opções na vida e foi, assim,
forçada a viver uma vida alienada ou pior? Talvez você mesma seja essa mulher.
Uma das questões menos discutidas a respeito do processo de individuação é a
de que, à medida que se lança luz sobre as trevas da psique com a maior intensidade
possível, a sombra, onde a luz não alcança, fica ainda mais escura. Portanto, quando
iluminamos alguma parte da psique, disso resulta uma escuridão mais profunda com
a qual temos de lutar. Não se pode deixar de lado essa escuridão. A chave, ou as
perguntas, não pode ser ocultada nem esquecida. As perguntas precisam ser feitas.
Elas precisam obter resposta.
O trabalho mais profundo é geralmente o mais sombrio. Uma mulher corajosa,
uma mulher que procura ser sábia, irá urbanizar os terrenos psíquicos mais pobres,
pois, se ela construir apenas nos melhores terrenos da psique, terá uma visão mínima
de quem realmente é. Portanto, não tenha medo de investigar o pior. Isso só lhe
garante um aumento no poder da sua alma.
É nesse tipo de urbanização psíquica que a Mulher Selvagem brilha. Ela não
tem medo da treva mais profunda pois na realidade consegue ver no escuro. Ela não
tem medo de vísceras, dejetos, podridão, fedor, sangue, ossos frios, moças
moribundas e maridos assassinos. Ela tem condições de ver tudo, de suportar tudo,
de ajudar. E é isso o que a irmã mais nova no conto do Barba-azul está aprendendo.
Os esqueletos na câmara representam, sob a ótica mais positiva, a força
indestrutível do feminino. Arquetipicamente, os ossos representam aquilo que não
pode nunca ser destruído. A simbologia dos ossos nas histórias revela essencialmente
que existe algo na psique que é difícil de destruir. Nosso único bem que é difícil de
destruir é nossa alma.
Quando falamos da essência feminina, estamos realmente falando da alma
feminina. Quando falamos de corpos espalhados no subterrâneo, estamos afirmando
que algo aconteceu à força da alma e no entanto, muito embora sua vitalidade
exterior tenha sido roubada, muito embora sua vida tenha essencialmente sido
esmagada, ela não foi destruída por completo. Ela pode voltar a viver.
Ela volta a viver através da jovem esposa e das suas irmãs, que afinal
conseguem romper com o antigo modelo de ignorância e contemplar o horror sem
desviar o olhar. Elas são capazes de ver e de suportar o que vêem.
Aqui estamos novamente no lugar de La Loba, na caverna do arquétipo da
mulher dos ossos. Aqui temos restos do que um dia foi uma mulher inteira. Contudo,
ao contrário dos aspectos cíclicos da vida e da morte do arquétipo da Mulher
Selvagem, que toma a vida que está pronta para morrer, a incuba e a devolve ao
mundo, o Barba-azul apenas mata a mulher e a desmembra até ela se resumir a nada
além de ossos. Ele não lhe deixa beleza, amor, identidade, e por isso nenhuma
capacidade de agir em sua própria defesa. Para consertar esse aspecto, nós, enquanto
mulheres, devemos contemplar o assassino que nos mantém sob controle, observar
os resultados do seu trabalho medonho, registrar tudo conscientemente, mantê-lo na
consciência, e depois agir.
Os símbolos do calabouço, da masmorra e da caverna estão todos interrelacionados.
Eles são antigos ambientes iniciáticos: um lugar ao qual ou através do
qual a mulher desce até o(s) assassinado(s), onde desrespeita tabus para descobrir a
verdade e de onde, através da inteligência e/ou do sofrimento, sai vitoriosa ao
expulsar, transformar ou exterminar o assassino da psique. O conto delineia para nós
as tarefas com instruções claras: descubra os corpos, siga os instintos, veja o que
estiver vendo, reúna energia psíquica, acabe com a energia destrutiva.
Se uma mulher não examinar essas questões do seu próprio entorpecimento e
assassinato, ela permanecerá obediente aos ditames do predador. Uma vez que ela
abra aquele aposento na psique que mostra como está morta e retalhada, ela
perceberá como diversas partes da sua natureza feminina e de sua psique instintiva
foram extirpadas e tiveram uma morte indigna por trás de uma fachada de
prosperidade. Agora que ela percebe isso, agora que registra como está presa e
quanto da sua vida psíquica está em jogo, agora, sim, ela pode fazer algo ainda mais
poderoso.
Recuar e dar a volta
Recuar e dar a volta são movimentos de um animal que se enfurna na terra
para fugir e aparece de novo às costas do predador. Essa é a manobra psíquica que a
esposa do Barba-azul efetua para restabelecer o domínio sobre sua própria vida.
O Barba-azul, ao descobrir o que considera a falsidade da esposa, a segura pelo
cabelo e a arrasta escada abaixo. "Agora é a sua vez!" ruge ele. O elemento assassino
do inconsciente se levanta e ameaça destruir a mulher consciente.
A análise, a interpretação dos sonhos, o autoconhecimento, a investigação,
todas essas atividades são realizadas por serem meios de recuar e de dar a volta. Elas
são meios de mergulhar e vir à tona por trás da questão, vendo-a de uma perspectiva
diferente. Sem a capacidade de ver, de ver realmente, deixa-se escapar o que foi
aprendido a respeito do self do ego e do aspecto numinoso do Self.
Na história do Barba-azul, a psique tenta agora evitar ser morta. Tendo
perdido a ingenuidade, ela se tornou astuciosa. Ela pede tempo para se compor — em
outras palavras, tempo para se recompor para o combate final. Na realidade externa,
encontramos mulheres planejando suas fugas, seja de um antigo estilo destrutivo, de
um amante, seja de um emprego. Ela pára para ganhar tempo, ela espera a hora
certa, ela planeja sua estratégia e reúne suas forças interiores antes de realizar uma
mudança externa. Às vezes é exatamente esse tipo de ameaça imensa do predador
que faz com que a mulher deixe de ser um amor de pessoa que se adapta a tudo e
passa a ter o olhar suspeito dos desconfiados.
Por ironia, os dois aspectos da psique, o do predador e o do jovem potencial,
chegam ao ponto de ebulição. Quando a mulher percebe que foi presa, tanto no
mundo interior quanto no exterior, ela mal consegue tolerar a situação. É um golpe
na raiz de quem ela realmente é, e ela planeja, como seria sua obrigação, destruir a
força predatória.
Enquanto isso, seu complexo predatório está furioso por ela ter aberto a porta
proibida e começa a dar suas voltas, tentando bloquear todos os caminhos de fuga.
Essa força destrutiva torna-se assassina e diz à mulher que ela violou o que havia de
mais sagrado e por isso deve morrer.
Quando aspectos opostos da psique de uma mulher atingem seu ponto de
saturação, a mulher pode sentir um cansaço incrível pois sua libido está sendo sugada
em duas direções opostas. No entanto, mesmo uma mulher que esteja morta de
cansaço com suas lutas infelizes, não importa quais sejam, muito embora ela esteja
com a alma exausta, ela ainda assim precisa planejar sua fuga. Ela precisa se forçar a
seguir adiante seja como for. Esse período crítico assemelha-se a ficar ao relento em
temperatura abaixo de zero um dia e uma noite. Para sobreviver, não se pode ceder à
fadiga. Ir dormir significa morte certa.
Essa é a iniciação mais profunda, a iniciação de uma mulher nos sentidos
instintivos correios através dos quais o predador é identificado e banido. É esse o
momento no qual a mulher cativa passa da condição de vítima para a condição de
alguém com a mente afiada, os olhos astuciosos, a audição apurada. É essa a hora na
qual um esforço quase sobre-humano consegue impelir a psique exausta para que
realize sua última tarefa. As perguntas-chave continuam a ajudar, pois a chave
continua a verter seu sangue sábio apesar de o predador proibir a conscientização.
Sua mensagem maníaca é a de que a mulher morra por querer a consciência. A
resposta da jovem consiste em fazer com que ele pense que ela se dispõe a ser sua
vítima enquanto está de fato planejando sua destruição.
Entre os animais diz-se que existe uma misteriosa dança psíquica entre o
predador e a presa. Diz-se que, se a presa mantiver uma espécie de olhar servil, e um
certo estremecimento que cause um leve ondular da pele sobre os músculos, ela
estará reconhecendo sua fraqueza diante do predador e concordando em ser sua
vítima.
Existe a hora de estremecer e correr, e existe a hora de não agir assim. Nesse
momento específico, uma mulher não deve estremecer e não deve rastejar. O pedido
da jovem esposa do Barba-azul por algum tempo para se recompor não é um sinal de
submissão ao predador. É seu modo astucioso de reunir energias para usar da força.
Como certas criaturas da floresta, ela está armando um bote contra o predador. Ela
mergulha no chão para escapar dele e ressurge inesperadamente às suas costas.
Como dar o grito
Quando o Barba-azul chama a esposa aos berros e ela tenta desesperadamente
ganhar tempo, ela está tentando reunir forças para superar seu carcereiro, quer ele
seja, especificamente ou em combinação com outros fatores, uma religião, um marido,
uma família, uma cultura destrutiva, quer se trate dos complexos negativos da
mulher.
A mulher do Barba-azul apela com desespero, mas com astúcia. "Por favor",
sussurra ela, "permita que eu me prepare para a morte."
"Está bem", rosna ele. "Mas prepare-se."
A mulher convoca seus irmãos psíquicos. O que eles representam na psique de
uma mulher? Eles são os propulsores mais musculosos, os elementos de natureza
mais agressiva da psique. São a força interior à mulher que sabe agir quando chega a
hora de matar. Embora essa qualidade seja retratada nessa história por meio do sexo
masculino, ela poderia ser atribuída a qualquer um dos sexos — bem como a objetos
que são neutros como, por exemplo, a montanha que se fecha sobre o intruso, ou o
sol que desce por um instante a fim de torrar o saqueador.
A esposa corre escada acima até seus aposentos e coloca a irmãs nas muradas.
Ela grita para as irmãs, "Vocês estão vendo a chegada dos nossos irmãos?" E as irmãs
lhe dizem que ainda não vêem nada. Quando o Barba-azul ruge para que a esposa
desça até o subterrâneo para que ele possa decapitá-la, mais uma vez ela grita, "Vocês
estão vendo a chegada dos nossos irmãos?" E as irmãs lhe respondem que parecem
estar vendo um pequeno redemoinho muito ao longe.
Nessa cena temos o desenrolar completo do surto de força intrapsíquica da
mulher. Suas irmãs — as mais experientes — assumem o papel principal nesse último
estágio da iniciação. Elas se tornam os olhos da irmã mais nova. O grito da mulher
transpõe uma longa distância intrapsíquica para chegar onde moram seus irmãos,
onde moram aqueles aspectos da psique que foram treinados para a luta, para lutar
até a morte se necessário. A princípio, porém, os aspectos defensores da psique não
estão tão acessíveis à consciência como deveriam estar. O entusiasmo e a natureza
combativa de muitas mulheres não se situam tão perto do consciente quanto seria
eficaz.
A mulher deve ensaiar a convocação ou a invocação da sua natureza
combativa, do redemoinho, da força do vento. O símbolo do redemoinho de areia
possui uma força tal de determinação que quando se concentra em vez de se
dispersar confere enorme energia à mulher. Com essa atitude mais impetuosa, ela
não perde a consciência nem é enterrada na companhia das outras. Ela resolve, de
uma vez por todas, o assassinato interno das mulheres, sua perda da libido, a perda
da sua paixão pela vida. Embora as perguntas-chave propiciem a abertura e a soltura
exigida para a liberação, sem os olhos das irmãs, sem o vigor dos irmãos armados de
espadas, ela não tem como vencer totalmente.
O Barba-azul chama pela mulher e começa a subir a escada de pedra. A mulher
grita para as irmãs, "E agora, já estão vendo nossos irmãos?" As irmãs respondem,
"Estamos! Estamos vendo nossos irmãos: eles estão quase aqui." Os irmãos vêm
galopando pelo saguão. Investem quarto adentro e forçam o Barba-azul a sair até a
balaustrada. Ali, com suas espadas, eles o matam e deixam o que resta para os
devoradores de carniça.
Quando as mulheres conseguem emergir da ingenuidade, elas trazem consigo
mesmas e para si mesmas algo de inexplorado. Nesse caso, a mulher agora mais sábia
procura o auxílio de uma energia masculina interna. Na psicologia junguiana, esse
elemento foi denominado animus: um elemento em parte mortal, em parte
instintual, e em parte cultural da psique da mulher que se apresenta nos contos de
fadas e na simbologia dos sonhos como seu filho, seu marido, um estranho e/ou
amante — possivelmente ameaçador, dependendo das circunstâncias psíquicas do
momento. Essa figura psíquica tem valor especial por ser investida de qualidades que
a criação tradicionalmente extirpa das mulheres, sendo a agressividade uma das mais
comuns.
Quando essa natureza do gênero oposto é saudável, como simbolizada pelos
irmãos no "Barba-azul", ela ama a mulher na qual reside. Ela é a energia
intrapsíquica que ajuda a mulher a realizar qualquer coisa que peça. É ele quem é
capaz de violência, enquanto ela pode ter outros talentos. Ele irá ajudá-la na sua
busca de consciência. Para muitas mulheres, ele é a ponte entre os mundos internos
do pensamento e do sentimento e o mundo exterior.
Quanto mais forte e amplo o animus (pense no animus como uma ponte), com
maior estilo, capacidade e desenvoltura a mulher manifestará suas idéias e seu
trabalho criativo no mundo exterior de modo concreto. Uma mulher com um animus
pobremente desenvolvido tem muitas idéias e pensamentos mas é incapaz de
manifestá-los para o mundo lá fora. Ela sempre pára a um passo da organização ou
da implementação das suas imagens maravilhosas.
Os irmãos representam a bênção da força e da ação. Com sua ajuda, no final,
duas coisas acontecem. A primeira consiste na neutralização na psique da mulher da
enorme capacidade paralisante do predador. A segunda é a substituição da virgem de
olhos vidrados por uma de olhos vigilantes, com um guerreiro de cada lado se ela
precisar convocá-los.
Os devoradores de pecados
O Barba-azul é sob todos os aspectos uma história de "cortes", de separar para
reunir. No último estágio da história, o corpo do Barba-azul é deixado para que os
devoradores de carne — os corvos-marinhos, as aves de rapina e os abutres — o levem
embora. Temos, assim, um final estranho e místico. Nos tempos antigos, havia almas
chamadas de devoradoras de pecados. Eram espíritos, pássaros ou animais, às vezes
seres humanos, que, num estilo algo semelhante ao do bode expiatório, assumiam os
pecados, os dejetos, da comunidade para que as pessoas pudessem ser redimidas ou
purificadas.
Já vimos como a Mulher Selvagem é La Loba, a mulher dos ossos, a
descobridora dos mortos, a que canta sobre os ossos dos mortos, trazendo-os de volta
à vida; e que essa natureza de vida-morte-vida é um atributo crucial da índole
instintiva e selvagem das mulheres. Do mesmo modo, na mitologia nórdica, os
devoradores de pecados eram os carniceiros que se alimentavam dos mortos,
incubavam-nos no ventre e os levavam para Hel, que não é um lugar, mas uma
pessoa. Hel é a deusa da vida e da morte. Ela ensina aos mortos como viver da frente
para trás. Eles vão se tornando mais jovens, mais jovens até que estão prontos para
renascer e para voltar à vida.
Esse ato de devorar pecados e pecadores, sua subseqüente incubação e sua
liberação de volta à vida constituem um processo de individuação para os seres mais
abjetos da psique. Nesse sentido, é correio e válido que para essa finalidade retiremos
energia dos elementos predatórios da nossa psique, matando-os por assim dizer,
esgotando sua força. Eles então podem ser devolvidos à compassiva mãe da vidamorte-
vida, para serem transformados e recriados num estado menos beligerante.
Muitos estudiosos que examinaram esse conto consideram que o Barba-azul
representa uma força que não pode ser redimida.5 Na minha opinião, porém, existe
mais um campo para esse aspecto da psique — não a transformação de um carnífice
num Mr. Chips, porém algo mais parecido com uma pessoa que precisa ser mantida
num hospício, um lugar razoável com árvores, céu e alimentação adequada, e talvez
música para acalmar, e não alguém a ser banido para um canto nos fundos da psique,
para ser torturado e insultado.
Por outro lado, não quero dar a entender que não exista algo que seja um mal
manifesto e irregenerável, pois isso também existe. No transcorrer dos tempos há a
sensação mística de que todo esforço de individualização realizado por seres
humanos também afeta as trevas no inconsciente coletivo de todos os humanos,
sendo esse o lugar de residência do predador. Jung disse uma vez que Deus adquiria
maior consciência6 à medida que os seres humanos adquiriam mais consciência. Ele
postulava que os humanos lançavam luz sobre o lado sombrio de Deus quando
expulsavam seus próprios demônios para a luz do dia.
Não afirmo saber como tudo isso funciona, mas de acordo com o padrão
arquetípico, aparentemente funcionaria da seguinte forma: em vez de insultar o
predador da psique, ou em vez de fugir dele, nós o desarmamos. Conseguimos esse
feito não nos permitindo pensamentos discordantes a respeito da vida da nossa alma
e especialmente do nosso valor. Capturamos os pensamentos nocivos antes que eles
cresçam o suficiente para nos prejudicar e os destruímos.
Desarmamos o predador ao enfrentar suas invectivas com a proteção das
nossas próprias verdades. Predador: “Você nunca termina nada que começa.” Você:
“Termino muitas coisas, sim.” Enfraquecemos os ataques do predador natural
levando a sério o que for verdade no que ele disser, trabalhando com essas verdades e
ignorando o resto.
Desarmamos o predador ao manter nossas intuições e instintos e resistindo à
sua sedução. Se fôssemos fazer uma lista de todas as nossas perdas até o momento
atual nas nossas vidas, lembrando-nos de ocasiões em que nos decepcionamos, em
que estivemos indefesas diante do suplício, em que tivemos uma fantasia cheia de
glacê e frufru, compreenderíamos que esses são pontos vulneráveis na nossa psique.
É a esses aspectos carentes e desprestigiados que o predador recorre a fim de
esconder o fato de que sua única intenção é a de arrastá-la para o subterrâneo e sugar
sua energia como numa transfusão de sangue.
No final da história do Barba-azul, seus ossos e cartilagens são deixados para
os abutres. Esse fato nos dá um forte insight sobre a transformação do predador.
Essa é a última tarefa para a mulher nessa viagem com o Barba-azul: a de permitir
que sua natureza de vida-morte-vida desmanche o predador e o leve embora para ser
incubado, transformado e devolvido à vida.
Quando nos recusamos a obsequiar o predador, sua força se esvai e ele é
incapaz de agir sem nós. Basicamente, nós o expulsamos para aquela camada da
psique na qual toda a criação ainda está em formação e o deixamos borbulhar
naquele caldo etéreo até que possamos encontrar uma forma, uma forma melhor para
ele preencher. Quando o energum psíquico do predador estiver derretido, ele pode
receber uma nova forma com algum outro objetivo. Somos, portanto, criadores. A
substância bruta, tendo sido reduzida, transforma-se no material para nossa própria
criação.
As mulheres descobrem que ao dominar o predador, dele retirando o que é útil
e deixando o resto, elas se sentem cheias de energia, vitalidade e ímpeto. Elas
extraíram do predador o que lhes havia sido roubado, o vigor e o sentido verdadeiro.
Pode-se entender de algum dos seguintes modos o ato de extrair a energia do
predador e de transformá-la em outra coisa. A raiva do predador pode ser
transformada numa exaltação da alma íntima voltada para a realização de uma
importante tarefa no mundo. A astúcia do predador pode ser usada para investigar e
compreender as coisas de forma distanciada. A natureza assassina do predador pode
ser usada para erradicar o que deve realmente morrer na vida de uma mulher, ou as
coisas para as quais ela precisa morrer na sua vida exterior, sendo essas coisas
diferentes conforme a ocasião.
Aproveitar as partes do Barba-azul é como isolar os elementos de valor
medicinal do venenoso meimendro ou os elementos curativos da temível beladona, e
usar esses materiais com cuidado para ajudar e para curar. As cinzas deixadas pelo
predador irão sem dúvida se levantar novamente, mas de forma diferente, com muito
maior oportunidade de ser reconhecida e com um poder muito reduzido para
enganar e destruir — pois você derreteu muitos dos poderes que ele dedicava à
destruição e voltou esses poderes para o que é útil e relevante.
O Barba-azul é uma fábula muito importante para as mulheres jovens, não
necessariamente na idade cronológica, mas em alguma parte da sua mente. É uma
história sobre a ingenuidade psíquica, mas também sobre o vigoroso desrespeito à
proibição de “olhar” e de afinal trucidar e reduzir a pedaços o predador natural da
psique.
As histórias têm a intenção de devolver o movimento à vida interior. A lenda
do Barba-azul é um exemplo de especial importância para ser aplicado à vida interior
de uma mulher que tenha sido assustada, acuada ou encurralada. As soluções
presentes nas histórias diminuem o medo, ministram doses de adrenalina na hora
certa e, o que é mais importante para o self ingênuo no cativeiro, abrem portas em
paredes anteriormente sem nenhuma abertura.
Talvez o mais importante seja o fato de a história do Barba-azul trazer ao nível
do consciente a chave psíquica, a capacidade de fazer qualquer pergunta a respeito de
nós mesmos, da nossa família, dos nossos projetos e da vida como um todo. Depois,
como um ser selvagem que tudo fareja, que cheira em volta, debaixo e dentro para
descobrir o que uma coisa é, a mulher está livre para encontrar respostas verdadeiras
para suas perguntas mais profundas e mais sombrias. Ela está livre para arrancar os
poderes daquilo que a assolou e para voltar esses poderes, que antes foram
empregados contra ela, para os excelentes usos que lhe forem mais convenientes.
Assim é a mulher selvagem.

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